31 outubro 2017

Exercícios literários

1 – Poderia dizer janelas, mas a falta de dentes aos 40 anos não era poesia.

2 – A camisa no chão estava suja de infidelidade.

3 – Ia trazer flores quando me lembrei de que seu vaso já estava enfeitado.

4 – Rotineiramente acendia velas e virava o Santo Antônio, no entanto chegara o inverno.

5 – Nasceu meu neto. Seria rei de todos, se um cometa soubesse.

6 – Todos no enterro queriam discursar elogios e valeu o meu silêncio.

7 – Todos festejavam o casamento. Eu já ia longe e só.

8 – Silêncio sobre a mesa. Um copo com gotas de cianeto sorria mudo.

9 – Quantas alegrias na fronteira, mas sem passaporte voltava para a depressão.

10 – A louca gritava na esquina da esperança, mas a luz do poste avivava a morte.

A - Os ponteiros do relógio do alto da igreja indicavam sempre as mesmas quatro horas e vinte minutos. Pássaros mudos desaprenderam a voar. Os cachorros congelados continuam no mesmo lugar apesar da sombra ter desaparecido. O vento estava amordaçado. Crianças gritam para dentro. Ninguém quer sobreviver a este fim de tarde.

B - A mulher chegou à cozinha com ímpetos de assassina. Esbravejou pelo presunto cortado em cubinhos em vez de tirinhas. Excomungou o uso de ervilhas frescas. Ajeitou o chapéu de chef de cuisine, provou uma garfada. Foi transportada para a primeira fila do Moulin Rouge, recebeu um sorriso da Monalisa, ouviu La vie em rose e, para disfarçar, fez caretas ao dizer que a omelete saiu razoável.


C - Nunca será segunda-feira. Trago cerveja, faço carinho. Danço zumba três vezes por semana, emagrecei 32 quilos e o Zé Luiz não dá a mínima. Agora aplaudir com entusiasmo as bundas na Dança das famosas é demais. Nosso amor termina com a música do Fantástico.

27 outubro 2017

Bullying político



Bullying é um termo importado do inglês. Bull significa touro. Bully sugere valentia. Em inglês, bullying designa formas de violência verbal, física ou psicológica intencional e repetitiva praticada por um indivíduo ou por um conjunto de indivíduos. A agressão é provocada numa relação desigual de poder. A intimidação, o deboche, o ataque causam dor, angústia sem possibilidade de defesa. Destroem a autoestima da vítima.
Os praticantes do bullying sistematicamente negam que o praticam e minimizam seus atos de brutalidades.

Se você pensa que isso só acontece nas escolas e locais de trabalho, enganou-se.
Você, eu e todos os brasileiros estamos sofrendo o bullying e não nos damos conta.
Chama-se bullying político.
Diariamente você é chamado de bobo, idiota, pamonha, tolinho, panaca, babaca. Os políticos sugerem que você é mais insignificante que filhote de lombriga.
Todos se dizem inocentes e inventam mentiras e desculpas que nem meu neto recém-nascido acredita.

"Eu sou inocente e vou provar minha inocência. Não existe nenhuma prova contra mim. As acusações são inconsistentes."
"Nunca tratei de doações eleitorais. Esse depoimento, realizado em processo de delação premiada, causa profunda estranheza. Ressalto que todas as doações que o partido recebe são feitas na forma da lei e declaradas à Justiça."
"Pessoalmente, gostaria de transmitir, a bem da verdade, que os ‘fatos’ apontados jamais ocorreram. Jamais conheci esse senhor que mente para aliviar sua pena.”
“Meu nome foi incluído nessa falsa lista por contrariar os interesses.”
“O Ministério Público, poderia ter evitado equívocos me ouvindo preliminarmente.”
 “Nego haver razões objetivas para que eu seja impedido de atuar nesses casos.”
“Se tem uma coisa que eu me orgulho, neste País, é que não tem uma viva alma mais honesta do que eu. Nem dentro da Polícia Federal, nem dentro do Ministério Público, nem dentro da igreja católica, nem dentro da igreja evangélica. Pode ter igual, mas eu duvido.”
Quando dizem: “Farei de tudo para provar minha inocência.” Parece que dizem em coro: Indicarei nomes para compor CPIs, colocarei verbas nos projetos de deputados e senadores, atrapalharei investigações, pagarei os melhores advogados, mudarei a lei, comprarei juízes e trabalharei mais duro ainda para destruir essa conspiração que deseja sujar meu nome.
Os políticos com espertos advogados e dinheiro, desmontam peças jurídicas sem desmentir o conteúdo.
E o bullying político insiste.
“Sou, vítima de uma ardilosa armação, uma criminosa armação perpetrada por empresários inescrupulosos que se enriqueceram às custas do dinheiro público e não tiveram qualquer constrangimento em acusar pessoas de bem na busca dos benefícios de uma inaceitável delação.”
“O pessoal da Lava Jato contaram mentiras a meu respeito, a Polícia Federal da Lava Jato mentiu, o Ministério Público mentiu e o juiz aceitou as mentiras e tá me condenando por coisas que ele próprio diz que eu não fiz. Então são eles que estão com problemas de explicar para a opinião pública, sabe que eu não cometi o crime que eles gostariam que eu tivesse cometido. Tá, eu já provei a minha inocência. Agora cabe a eles terem coragem de pedir desculpas pra mim.”
Você está cansado de ouvir e de ler, mas o bullying persiste.
“O PSDB reafirma seu compromisso contra a impunidade, defendendo a ampla investigação de toda e qualquer denúncia devidamente fundamentada contra quem quer que seja, inclusive membros do partido.”
Não temos autoridade para dizer: “Vossa Excelência está na mídia destruindo a credibilidade do Judiciário brasileiro” ou “Por qué no te callas?”.
Enquanto isso: “Dinheiro continua circulando em malas anos depois do início da Lava-Jato. Regras são gestadas no Congresso Nacional para beneficiar políticos. Ministros do Supremo soltam e ressoltam corruptos poderosos.”
O povo brasileiro sofre bullying político em silêncio.
Até quando?
Em 1789 os franceses tomaram a Bastilha.
Em 1969 os militares fecharam o Congresso brasileiro.
Em 2013 os black bloc’s brasileiros manifestaram a fúria questionando a ordem vigente.

Em 2018 ...

24 outubro 2017

A foto que não tirei

                                                                     
                                                                                              (10/04/2007 início do governo Arruda)

Assim que começou o novo governo do Distrito Federal foram tomadas várias atitudes: exoneração de 17 mil funcionários em cargos comissionados e de confiança, devolução de 144 imóveis alugados, devolução de 700 automóveis, redução de 30% nos contratos de prestação de serviços, retomada de diversas áreas invadidas, remoção de placas de propaganda e implosão de três prédios inacabados.
Nada me afetou diretamente a não ser a curiosidade em ver ao vivo uma implosão.
A primeira implosão foi num hotel de uns vinte andares às margens do lago. Eu estava com febre alta e fui proibido pelo médico de sair de casa. Vi a destruição pela televisão no exato momento em que o fato ocorria.
A segunda implosão foi em um shopping center abandonado no centro da cidade. Para evitar prejuízos na área comercial a implosão foi programada para um domingo. Naquele domingo, sim justamente naquele domingo, naquela hora, eu tive que buscar minha filha que estava chegando de viagem. Vi a destruição pela televisão. Em replay.
A terceira implosão estava com dia e hora marcada. Nada impediria que eu fosse ao local para ver a implosão de outro shopping abandonado. Esperto, fui ao local com bastante antecedência. Estacionei longe para não ter problemas com congestionamento na hora de ir embora. Posicionei-me junto da fita de isolamento, sol pelas costas e montei o tripé para a máquina fotográfica. Bati meia dúzia de fotos. Com objetiva, sem objetiva. Maravilha. Quem sabe ainda ganho uns cobres com minhas fotos?
O sol estava forte. Faltavam só uns noventa minutos. Uma hora antes da explosão, conforme anunciado, tocou uma sirene alertando a população. Outra sirene tocou quando faltava meia hora. A explosão seria às dez. Agüentei firme no calor. As pessoas empurrando para se aproximar do limite imposto pela segurança. E eu ali firme com meu tripé. Comentei com um fotógrafo profissional, que estava do meu lado, que o vento estava forte e que a poeira da explosão viria rapidamente em nossa direção.
Virei-me para trás para perguntar as horas quando ouvi o barulho de uma dezena de explosões. Liguei rapidamente a máquina, a objetiva se moveu lentamente para frente. Dez segundos depois apertei o obturador. Fotografei a poeira. Poeira que me cobriu antes da segunda foto.

Odioso novo governador. Bem que poderia ter me telefonado avisando dez segundos antes da implosão. Minha foto virou pó.

17 outubro 2017

MEGASSENA


Com este conto conquistei o meu primeiro troféu literário.


Hoje é quinta-feira. Começo o dia cedo, como todos os outros. Levanto, faço a barba, tomo banho, me visto e escolho uma gravata para combinar com o dia.
Enquanto o café esquenta na velha chaleira, divido uma laranja com Bruna. Do pão francês fico com a parte de baixo. Ela escolheu a parte de cima há vinte e dois anos. Na metade superior, uma fatia de queijo, na inferior manteiga e geléia de uva. Cada um com sua xícara azul.
Escovo os dentes. Laceio a gravata em movimentos rápidos e automáticos.
Trocamos um beijo de hortelã.
– Vai com Deus!
– Fica com Deus!
Desço elevador. Ligo carro. Saio da garagem. Ouço noticiário. Estaciono no trabalho. Subo elevador.
– Bom-dia, Neuza! Bom-dia, José!
– Bom-dia, doutor Eduardo! – respondem os dois juntos com o office-boy.
Leio manchetes. Política, nacional, internacional, será que o Fluminense ganhou? Loterias, megassena: 06, 07, 09, 20, 27, 53. De novo: 06, 07, 09, 20, 27, 53. Será? Seis, sete, nove, vinte, vinte e sete, cinqüenta e três! Calma! Autocontrole! Fique na sua!
– Neuza, já tem café?
Meu Deus! Acumulada!
Abro a carteira e checo os números cuidadosamente mais uma vez. O número do concurso também é o mesmo. Dez, quinze anos, os mesmos números. Acaricio o papelzinho sentindo a euforia na ponta dos dedos. Parece que todos estão olhando para mim. Meu coração entra em ritmo de Marquês de Sapucaí, o sangue corre mais do que o Ayrton Senna. Descubro o que significa delirium tremens. Não é falta de álcool. Sinto falta de ar, de chão. Tudo internamente. Mantenho a fisionomia impassível, tal monge tibetano.
– Duas colheres, por favor. Pode levar o jornal.
No catálogo telefônico busco a Caixa Econômica Federal. Anoto meia dúzia de telefones e guardo no bolso da camisa. A manhã está improdutiva. Junto todas as forças para não declarar minha explosão interna e, ao mesmo tempo, me conter, aguardando o número de ganhadores com os quais terei que dividir dezessete, dezessete, dezessete maravilhosos, gostosos, vistosos, cheirosos milhões de reais. Oito milhões de dólares. Isso é dinheiro que só o cão! Isso é dinheiro em qualquer lugar do mundo!
Na hora do almoço, nem saio do estacionamento. Alucinadamente procuro nas estações do rádio a notícia com o número de vencedores. Nada! Angustiado parto em busca de uma lotérica.
– Me dá um volante da esportiva? É verdade que teve vencedor da Mega Sena daqui de Brasília?
– Sozinho! Cara rabudo! Se fosse eu largava emprego e mulher ao mesmo tempo. Ainda falava umas boas para cada um!
Dirijo até a Caixa Econômica e do estacionamento, com o celular, ligo para o primeiro número guardado no bolso da camisa.
– Por favor, uma informação: acertei algumas quinas da megassena e gostaria de saber com quem devo conversar para retirar o dinheiro?
– Senhor, estamos na hora do almoço. Telefone mais tarde.
– Obrigado.
Ligo para o segundo número.
Para a mesma pergunta recebo a informação que devo conversar com o gerente Robson a partir das quatorze e trinta. Quinto andar.
A pé, busco nas proximidades algum restaurante simples. Comida a peso. Vai manso, por enquanto você só tem um papelzinho amassado no bolso da calça. A consciência sempre mantém o diálogo aberto. Muita salada, frango grelhado e algumas verduras. A fome está presente, entretanto é difícil de engolir nesta tensão. Suco de maracujá para acalmar os nervos. Sento-me à mesa. Tenho a impressão de que todos estão olhando para mim. Será que está tão claro que sou o mais novo felizardo do planeta? Pago oito reais e setenta centavos. Exijo troco. Como sempre fiz.
Quatorze e trinta e cinco.
– O seu Robson se encontra?
– Pois não, em que posso ajudá-lo?
Meu coração lateja, sacode, pula.
– Acertei umas quinas da megassena e quero saber como sacar o dinheiro?
– Parabéns! Vamos abrir uma conta, senhor... como é mesmo seu nome?
Debêntures, open market, IPC, IGP-M, impostos sobre aplicações financeiras, factoring, commercial papers, fundos de investimentos, mercados futuros, carteira de ativos... e três horas de aula foram suficientes para acreditar no profissionalismo do seu Robson.
Exatos dez por cento em aplicação de seis meses. Novecentos mil em outra aplicação de médio prazo. Cinqüenta mil em curto prazo. Disponibilizo aproximadamente trinta mil reais e o restante – já estou pirado – chamando quatorze milhões e oitocentos mil de restante, investidos em várias opções.
Retorno tarde ao trabalho. Ninguém pergunta o porquê do meu atraso. É comum ter que visitar clientes após o almoço. Acho ótimo. Parece que o resto da tarde será absolutamente tranqüilo. Eu preciso acender uma vela e agradecer a Santo Expedito. Mentalmente começo a procurar a melhor forma de ajudar garotos carentes a se profissionalizarem. Não darei nada a eles, ensinarei. O quê, quem, aonde, como, são perguntas cujas respostas têm 10% e prazo de seis meses de aplicação.
À noite, o hábito. Jantamos e vimos mais um capítulo da novela. Após o noticiário, Bruna conversou longamente ao telefone enquanto o forno entrava em ação mais uma vez. Deliciosos pãezinhos de queijo para o futebol e a cerveja gelada. Bruna não desconfia de nada. Nem olha para mim.
Na sexta-feira não altero a rotina.
Barba, banho, gravata para combinar com o dia. Café, chaleira, laranja, Bruna, queijo, geléia de uva, xícara azul.
Elevador, garagem, noticiário, estacionamento, elevador.
– Bom-dia, Neuza! Bom-dia, José!
– Bom-dia, doutor Eduardo! – Responde o trio, incluído o office-boy.
Leio as manchetes. Política, nacional, internacional, esportes.
– Neuza, já tem café?
Duas diferenças imperceptíveis estavam presentes. Um talão de cheques recheado e a cabeça em convulsão. Ninguém estava mais olhando para mim. Estou disfarçando bem! Estou orgulhoso da minha estratégia.
Minha mesa tem poucos papéis. Telefono para a matriz em São Paulo e resolvo uma das três pendências. Com José troco algumas idéias e passo todas as informações a respeito da grande licitação da qual a empresa participará em quinze dias. Numa folha de papel rascunho o roteiro e listo as pessoas envolvidas no processo do projeto de lei que interessa à empresa. O resto é apenas o resto. Vou cuidar da minha vida.
Eu havia observado uma construção nova na Asa Norte, bairro nobre do Plano Piloto. Construtora séria, cumpridora de prazos, bons acabamentos. Alguns telefonemas depois descubro que o lançamento das unidades, apartamentos de três quartos, só deverá acontecer em duas ou três semanas. Agendo uma visita ao canteiro de obras com a finalidade de conhecer o projeto e os acabamentos. O engenheiro é obrigado a disponibilizar o memorial descritivo. Do corretor quero apenas conhecer as condições de compra e financiamento.
Após o expediente procuro Aninha. Minha doce e querida Aninha. Ela mora numa pequena quitinete. Eram conhecidos por apartamentos JK. Janela e Kuarto. Na cabeceira, um porta-retratos com uma foto onde aparecemos abraçados. Ao fundo o Pão de Açúcar. Quando completou vinte anos a levei para conhecer o Rio de Janeiro. Lá se vão outros dois anos. Debaixo do porta-retratos está o boleto para o aluguel da kit. Aninha fica muito constrangida e eu também não gosto do assunto. Deixo o dinheiro junto do porta-retratos e ninguém fala disso. Aninha é esforçada, durante o dia trabalha em escritório e à noite estuda. Forma-se no fim do ano em administração de empresas. O dinheiro está muito curto. Apesar da insistência de Aninha, saio para não aborrecer Bruna.
O jantar e a novela me aguardam.
Sábado é dia de levar a roupa à lavanderia, fazer compras no supermercado, lavar o carro, mandar consertar novamente o liqüidificador... Faço tudo com enorme rapidez. Sobrou um pouco de tempo para passar em uma agência de turismo e pegar alguns folders de turismo. Roteiros na terra de Monet, Cézanne e Toulouse-Lautrec. Escondo tudo num envelope pardo. No porta-malas.
O encontro para a sagrada feijoada dos sábados tem hora certa para começar. Terminar, só quando o dia virar noite. Entupidos de alegria, feijoada e cerveja.
Domingo é dia de preguiçar. Sempre foi. Sempre será. Preguiça de levantar, preguiça de fazer a barba, preguiça de ler o jornal, preguiça de tirar o pijama, preguiça de mudar de canal... Não pode ter preguiça de fazer o almoço nem de dormir depois do almoço. O dia acabou depois do futebol e o dos fantásticos gols. E o segredo não foi revelado, nem descoberto.
Barba, banho, gravata para combinar com o dia. Café, chaleira, laranja, Bruna, queijo, geléia de uva, xícara azul.
Elevador, garagem, noticiário, estacionamento, elevador.
– Bom-dia, Neuza! Bom-dia, José!
– Bom-dia, doutor Eduardo! – Respondeu o grupo, incluindo o office-boy.
Leio as manchetes. Política, nacional, internacional, loterias, megassena. Prêmio do vencedor: novecentos e sessenta mil reais.
Seu Robson acertou em cheio: o valor do prêmio do vencedor seria em torno de novecentos e cinqüenta mil reais.
– Neuza, por favor, providencie uma passagem para São Paulo, amanhã no primeiro horário, com volta prevista ao fim do dia.
Tenho sorte mais uma vez. Somente um ganhador. Meu álibi está pronto. Escrevo a carta de demissão em caráter irrevogável, por razões pessoais. Preparo um breve relatório das minhas atividades e esboço um mapa para futuras intervenções da empresa em terras e gabinetes candangos. Elogios para José que já está em condições de pegar no timão e comandar a nau brasiliense.
À tarde visito o canteiro da obra. Certifico-me da posição solar. Sala em forma de ele, suíte e banheiro social, pisos em granito. Vista para o lago. Varanda na sala. Aninha terá uma varanda para colocar suas plantas e eu terei espaço para dormir na rede após um delicioso almoço. Aninha tem muitos predicados. A cozinha é um deles. Eu ainda terei que comprar os móveis. Aninha é exigente e tem muito bom gosto.
Com o corretor a conversa é fácil. Quinto andar, de canto. Ele quer vender e eu comprar. Consigo um contrato diferenciado. Cinqüenta por cento de entrada, trinta por cento na entrega das chaves e o restante assim que não houver nenhuma pendência construtiva no imóvel. Ainda escolho a melhor vaga da garagem. Guardo num envelope com timbre da Construtora.
Chego cedo em casa. Bruna me recebe alegre dizendo que fez uma canja de galinha especial, do jeitinho que eu gostava. Se fosse por ela, teríamos faisão. Eu só estava pensando naquela dinheirama toda. No meu segredo e no apartamento que comprei à tarde.
– Deliciosa canja! – Murmurei, ao servir-me pela segunda vez. – Terei que viajar para São Paulo amanhã. Retorno à noite.
– O que você tem, Edu? Está tão quieto! Alguma coisa no trabalho?
– Apenas cansado. Tem café?
Eu não quero conversar. Poderei externar meus sentimentos e o meu segredo. Bruna vai saber na hora certa. Da forma que merece! Não agora.
Durante a novela Bruna ainda pergunta, mais uma vez, se está tudo bem. E mais uma vez respondo que estou um pouco cansado. Levanto e vou dormir.
No avião abro o envelope pardo e estudo as possibilidades francesas.
Às nove horas em ponto estou na matriz. Sou logo recebido pelo Dr. Rubens. Com o café ainda na xícara entrego a minha demissão e o planejamento para as futuras ações da empresa em Brasília.
Dr. Rubens sempre que tem um problema fica silencioso por um longo minuto esfregando o lóbulo da orelha esquerda entre o polegar e o indicador.
– Ok, Eduardo. Entendi e respeito sua posição. Agora, cá entre nós, qual é o verdadeiro motivo?
Pergunto se ele ainda se lembrava da história daquela tia querida que morava seis meses em Paris e seis meses no Rio de Janeiro. Logo após a afirmativa explico que ela faleceu algum tempo atrás e que no espólio fiquei como herdeiro único. Terei que viajar em breve para a França para resolver algumas questões burocráticas.
Dr. Rubens sempre foi muito prático. Aproveitou minha presença e questionou sobre a capacidade do José, o quanto estava a par dos interesses da empresa, se conhecia nossos clientes, se eu poderia indicar alguém para a atual função de José e todas aquelas coisas que se perguntam num momento destes. Declinei do convite para almoçarmos juntos. Ainda queria aproveitar a tarde para resolver mais uma coisinha.
Saio a pé. Necessito caminhar um pouco para aliviar minha tensão de blefador. No centro da cidade não sinto segurança. Entro no metrô, troco de linha na estação Paraíso e desembarco em frente ao MASP. Caminho uma quadra e faço um lanche rápido. Encontro uma agência de turismo de gente graúda.
Eu sei o que quero. Um mês na França, ou mais. Dez dias em Paris. Torre Eiffel, Arco do Triunfo, Louvre, Sena, Notre Dame, Moullin Rouge, Sorbonne, Maxim´s, Place Vendôme, Museu Baccarat, Ópera de Paris, Basílica Sacré-Coeur, Folies Pigalle. Meu Deus, quantas opções! Bordeaux, Montpellier, Marseille, St.Tropez, Toulon, Nice, Cannes, Lyon. Quantos roteiros! Quantas possibilidades! Vualá!
A experiência da agente foi fundamental. Preparou um pacote para turistas de primeira viagem. Pacote embrulhado com laço de fitas, para presente!
Antes do terceiro cafezinho estava com as duas passagens na mão. Guardo as passagens e os roteiros em envelope branco.
Em dez dias embarcaremos e ela conhecerá um pouco mais do que o Rio de Janeiro.
Ainda na agência de turismo ligo para Aninha.
– Aninha, vou falar rápido porque estou quase sem bateria! Sei que você tem aula, entretanto me espere às oito, lá no Beirute. Tenho que conversar com você! Chame também sua mãe. Vou desligar. Estou falando de São Paulo. Beijos, até daqui a pouco.
O momento é especial. Chego um pouco antes, solicito um prato de quibes e peço uma cerveja. Minha cabeça está novamente acelerada.
– Garçom, por favor, dê uma olhada na minha mesa. Vou até o carro e já volto.
Retorno rapidamente com o envelope branco.
Aninha chegou esbaforida e quase de forma mal-educada perguntou o que é que havia de tão urgente?
Estou muito ansioso. Guardando segredos e fazendo mistérios, pedindo demissão – tanto dinheiro... Resolvo entrar em erupção.
Estendo o envelope com o timbre da construtora.
– Não estou entendendo direito. Você comprou um enorme apartamento? ... você... eu... está no meu nome...
Aninha pulou da cadeira e me abraçou como criancinha, e como criancinha sentou no meu colo. Não parava de rir e de me abraçar.
Neste exato momento, Bruna aparece.
E grita de longe.
– Que bagunça é essa?
Todos olham para mim.
– Mãe, papai comprou um apartamento para mim!
Bruna sempre foi muito esbanjadora e ciumenta e logo perguntou de onde veio o dinheiro para isso.
– Antes de responder, gostaria que abrisse este envelope. Estendo a mão com envelope branco, o das passagens e o roteiro.
Será que a cadeira aguenta? Somos três figuras abraçadas pulando loucamente de alegria.

05 outubro 2017

Mulheres que mordem



mulheres que mordem

BEATRIZ LEAL

Ímã Editoral
120 páginas
R$ 45,00








Há diversas formas de começar um livro.
A minha, costumeiramente, é pela capa. A imagem é de sensualidade quase explícita.  Mas o título não corresponde ao desenho. Então fui impactado pela segunda vez com uma questão mentalmente não resolvida.
A dica do enigma veio na contracapa falando em quatro mulheres, quatro mordidas. Aí percebi a genial simbiose da ilustração com o título. Sou leigo em botânica. Mulheres são representadas pelas flores enquanto a mordida é símbolo da agressividade, da pessoa guerreira então nada melhor que uma planta carnívora. A percepção sexual fica para a cabeça pervertida deste leitor.
Particularmente desgosto de resgate de histórias — tão na moda — dos tempos da ditadura. Seja de um lado ou de outro.
Este tem alguns diferenciais. Foi finalista do Jabuti, é de autora jovem que não vivenciou aqueles tempos, é brasiliense, foi indicada pelo clube de leitura e me entregou o livro com uma dedicatória.
Imagino que tenha sido tarefa difícil escrever sobre a ditadura argentina que a autora não vivenciou.
Em cada capítulo conhecemos pedaços de histórias de personagens.
Em inteligente combinação, o nome dos personagens – em negrito – inicia capítulos quando não são os visivelmente reconhecíveis relatórios ou as cartas – em itálico – de Rosa.
Os personagens foram bem trabalhados de modo que cada um tivesse “voz” e personalidade diferenciada.
 A narradora apresenta Elena como obsessiva esposa de militar, que “só teria de aprender a conviver com a disciplina que já tinha contaminado os passos de Ramiro.”... “Ela se ocupava contando quantas mastigadas havia dado no frango, movimentando a arcada dentária inferior em direção à superior no ritmo da música que tocava”... “Elena só não contava mastigadas quando ouvia de longe os passos fortes de Ramiro. Cinco anos depois, ela sabia que ele precisava invariavelmente de 59 passos para chegar do quarto á cozinha, de manhã, após acordar.”.
  Laura, a arredia filha adotada, é apresentada em época diferente. Já adulta. “tomando cuidado para não tropeçar nas raízes protuberantes de árvores”... “E sente um leve prazer quando tropeça, mapeando qual foi o pensamento responsável por fazê-la parar de prestar atenção no chão.”... “Criou um tipo de intimidade com a cidade que ninguém mais tira. No entanto, há dias em que ainda sente uma peça vazia.”.
Por meio das cartas sabemos que Rosa é mãe da militante Clara. 
Conhecemos o torturador por meio do relatório de entrevista na imigração.
À pergunta “— E por que ela foi mantida viva tanto tempo?” Respondeu: “Quando ela chegou, logo descobriram que estava grávida, e de pouco tempo ainda. Então mantiveram-na, até o bebê nascer, em regime especial. Para que não abortasse espontaneamente, a gente tinha limite nas metodologias que podíamos aplicar. Tínhamos que conseguir  alguma informação, mas os limites para mulheres grávidas eram mais estabelecidos. Era como se os bebês dessem a elas um pouco de chance a mais. Não entendo por quê, se a ideia era que todo mundo morresse mesmo. “.

Os conflitos aos poucos se fecham em torno de um final não previsível, mas quase feliz, porque não há felicidade possível na opressão.

03 outubro 2017

TODOS OS ABISMOS CONVIDAM PARA UM MERGULHO


TODOS OS ABISMOS CONVIDAM PARA UM MERGULHO

Cinthia Kriemler

Editora Patuá

272 páginas

R$ 45 no site da editora




O título do livro é um indicativo da leitura que nos espera. Se você é do tipo mimimi, gosta de poesia lírica, rosas perfumadas e sedutores príncipes encantados procure a sua turma. Este livro é para os que sabem a diferença entre amor e sexo. E que também sabem que mortos, muito além das qualidades enumeradas pelo padre na beira do túmulo, fedem.
A autora não faz pacto com o leitor propondo histórias terríveis e solicitando o obséquio para o leito acreditar. Tudo é verossímil. Narrado em primeira pessoa, tudo é real e verdadeiro. Quando a luz se vai, a escuridão penetra.
Trata-se de uma assistente social depressiva que atende fragilizados na violência doméstica. A escolha da profissão não é opção masoquista para ouvir e intervir em dramas familiares. A protagonista vivenciou o terror com o pai, mãe e filha. Ela é forte. Objetiva minimizar o sofrimento de quem é subjugado.
Beatriz precisa entrevistar um pai. “Tenho que ouvir o depoimento desse lixo sem me alterar. Não posso apertar os lábios, nem franzir a testa, nem arquear as sobrancelhas, nem balançar o pé, nem fazer ironia, nem respirar com força. Nem, nem, nem, nem. Nenhum antagonismo. Imparcialidade, Beatriz, imparcialidade. Somos pessoas muito civilizada, nós que ouvimos sobre incestos, estupros, porradas, queimaduras, facadas, estrangulamentos, afogamentos, tiros, overdoses, suicídios. Que buscamos em cada abusador — pai, mãe, tio, irmão, namorado, colega, professor — um indício de arrependimento por seus crimes. Mesmo sabendo que isso nunca acontece.”.
E prossegue mais adiante: “Dentro de alguns dias entrego um laudo ao juiz. Que vai juntá-lo ao de um psicólogo. Ambos servirão para determinar o seu destino. No meu lado vai estar escrito que você representa uma ameaça à usa companheira, ao seu filho e à sociedade. Que você é um pedófilo desgraçado que pratica incesto. Uma aberração. Mas tudo dito de maneira civilizada. Baseado em depoimentos, fatos, provas. Como se não houvesse dentro de mim uma besta capaz de morder. Eu mordo. Forte. Se eu pudesse dizer o que penso, diria aos seus algozes na cadeia para não matar você logo. Pediria que o mantivessem vivo, sendo humilhado, estuprado por um, por dois, por dez homens, apanhando até ficar roxo. Só não quero que você morra. É tão pouco.“.
                Não é à toa que ela se chama Beatriz: aquela que faz ou procura fazer os outros felizes; que a psicóloga se chama Clarice: a que brilha, a que traz luz e que a filha Laura é aquela que se deixa dominar por sentimentos contrários, que se preocupa com a opinião dos outros.
A narrativa tem palavras de fácil compreensão, dispensa dicionários. O dicionário não é o instrumento para mensurar a escrita. O conteúdo pesado necessita de balança.

                Sou fã da escrita de Cinthia Kriemler, entretanto esta leitura não é recomendada após as refeições tampouco antes de dormir.
 
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