22 agosto 2017

Ciúme é o bicho


Bem de noitezinha sái para comprar um descongestionante nasal para a minha esposa.
Ao retornar, estacionei na garage e, na porta do elevador, esperei um pouco pela manobra do vizinho do terceiro.

— A farra foi boa, hem?  —exclamei sorrindo solidário.

— Cacete! Até você! Não bastasse a minha mulher para pegar no meu pé!

— Então dá uma ajeitada no cabelo e arrume os botões da camisa que estão de casas trocadas.

Sacando a camisa da calça e desabotoando tudo.  — Tirei a camisa para limpar o caldo de feijão. Depois de meia dúzia de chopes, um caldinho é bom para recuperar as forças.

— Depois de dormir no sofá, eu nunca mais limpei molhos de tomate da camisa.

— Mulher ciumenta é o bicho.

— Nem me fale.

— Teve uma vez que a minha mulher encontrou um papelzinho no bolso da minha calça na inspeção antes de ir para a máquina de lavar. Disse o vizinho enquanto abotoava a camisa.

— E ai?

— Tava anotado o número do CREA. Mas ruminou bobagens o dia inteiro antes que eu chegasse em casa para ouvir o mundo se acabar em trovoadas. Não queria acreditar que a gostosa da Crea era Conselho Regional de Engenharia e Agronomia. Parece que vive noutro planeta!

— A minha vive em outro planeta. Nem tem perfil no Facebook.

O vizinho ainda deu mais uma ajeitada no cabelo antes de apertar o 3.

— A minha também não tem Face. Imagine que noutro dia, enquanto eu estava no banho, chegou alguma mensagem no celular e ela foi ver. No segundo seguinte berrou no banheiro: — Quem é essa vagaba que quer saber o que você está pensando?

O elevador chegou ao terceiro. Ele desceu e desejou-me  boa-noite.


Eu desejei-lhe  boa sorte.

15 agosto 2017

Semana alienada




Eu me perdi de mim mesmo. Vaguei sem rumo durante uma semana.

O espelho não me informava o nome. Não dizia se eu era macho reprodutor, fêmea aposentada ou criança curiosa. Não havia indícios de cabelos brancos, sobrancelhas desenhadas, furos nas orelhas ou dentes de leite.

Não chorei porque esqueci como se chora.

Não reclamei porque não sabia se deveria reclamar em português, chinês, russo ou na língua do pê.

Se eu soubesse quem eram meus pais eu gritaria:

— Socorro mamãe. — Socorro papai.

A minha memória não foi afetada. Guardava fatos fundamentais como os nomes das luas de Marte: Fobos e Deimos. Que Marilyn Monroe era canhota. E que aquele dia, em que uma alma caridosa me ajudou, era uma quinta-feira.

Ela se disse casada comigo. Sugeriu que eu fizesse exercícios. Que fosse caminhar como sempre. Que o sol produziria milagres.

Minha mulher é sábia.


O milagre aconteceu quando coloquei o meu calção caminhante e encontrei a minha RG no bolso. 

01 agosto 2017

Sacola de supermercado


Não sou rico, não tenho carro do ano, mas sou um privilegiado. A minha vizinha é um colosso. Só de vê-la, o sol ilumina e aquece o hall de elevadores que não tem uma janelinha sequer.

O hall dos elevadores é o nosso local de encontros secretos. Tão secretos que ela nem sabe que são encontros.

Fiz a assinatura do jornal só pelo pretexto de pegá-lo bem cedinho na porta de casa e deparar com ela, casualmente, quase todos os dias, quando sai vestida para a academia.

Embora ela nem sempre responda aos meus bons dias, tenho certeza que se perfuma só para me enlouquecer ainda mais.

Já fiz uma série de exercícios mentais para tentar saber por que me ignora nesses três anos em que praticamente vivemos sob o mesmo teto. Descartei os fatos de que sou casado, 30 anos mais velho e escritor sem Nobel de Literatura.

Ontem tudo foi diferente. Minhas preces foram atendidas. Na hora do almoço, encontramo-nos na garagem e entramos juntos no elevador. Eu segurava duas sacolas de compras de supermercado. Enquanto ela pressionava o botão do nosso andar perguntou se eu cozinhava.

Em milissegundos enumerei algumas possibilidades para a resposta:

a)      Ela vai me convidar para jantar;

b)      Ela vai me chamar para ver um programa culinário na TV;

c)        Ela vai me ensinar a fazer bolinhos de chuva.

Respondi que gosto de cozinhar.

— Que bom. Lá na rua do açougue, aos sábados pela manhã, tem uma feirinha. Tudo natural. Tudo fresquinho. Mais barato que supermercado. Vai lá!

Quando chegamos ao nosso andar, nem o sol apareceu.


 
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