19 setembro 2016

Tempero de família


Cozinheiro sofre.  Principalmente com a concorrência dos reality’s cooker's.
Sofre só até achar o prato certo.
Precisa ser saudável, fácil, sem frescuras e preferencialmente econômico. Ser gostoso e boa apresentação são condições para todos os pratos, então não carecem ser mencionados. Mas um nome sofisticado, francês, agrega valor.
Se você não quiser a receita, leia só os dois últimos parágrafos.
Para os parisienses é frango com quiabo, um prato caipira. Mas, para mim, analfabeto culinário, acho até difícil de pronunciar, ratatuille, é sofisticação em primeiro grau.
Fui até a mercearia perto de casa. Providenciei quatro tomates vermelhos escuros, bem maduros, outros três tomates italianos por serem mais compridos que redondos, uma abobrinha, uma berinjela e quatro cebolas médias – três roxas para dar um colorido legal. Pedi ao atendente um raminho de alecrim, um de manjericão e outro de tomilho. Alho eu não precisava comprar.
Em casa coloquei o avental que me transforma de leigo em cozinheiro.
Comecei com o molho. Na panela aqueci meia xícara de azeite, acrescentei rodelas da cebola comum.
Piquei dois dentes de alho e juntei às cebolas
Descartei as sementes dos três tomates maduros e cortei em pedaços pequenos.
Quando a cebola estava amarelando somei os tomates à panela. Acrescentei os ramos desfolhados de alecrim, tomilho e manjericão. 
— Não conte para ninguém, mas em vez de sal usei dois cubinhos de bacon. 
A minha páprica picante acabou, mas como gosto de pimenta juntei meio dedo-de-moça picado.
Esperei desmanchar o tomate, desliguei o fogo, esperei esfriar um pouco e coloquei no processador.  Depois voltei o molho para a panela para engrossar um cadinho.
— Caraca!  Quase esqueci  de colocar o vinho na geladeira (poderia ter sido a cerva no freezer).
Fatiei os tomates italianos, as cebolas roxas. Deixei para fatiar a abobrinha e a berinjela para a última hora porque escurecem.
Despejei o molho num refratário e dispus as rodelas alternando os legumes.
— Bem que eu poderia ter comprado um pimentão amarelo!
Fotografei com o celular, antes e depois de assar e disparei a imagem via whatsapp para Santa Catarina.




Nos 40 minutos que assava 200oC  lavei a louça, estendi a toalha branca na mesa, tomei uma chuveirada, fiquei cheiroso. Mentalmente amarrei o Rodrigo Hilbert e acendi uma vela para a Fernanda Lima.

13 setembro 2016

O que fazer nos dias de chuva?




Questionei minha vida. Repensei trabalho, vícios, saúde, amor, atitudes, amizades, laser. Passei a caminhar diariamente e refletir mudanças.
Houve o dia em que senti que era o momento de reviver a chuva. Será que a chuva provoca resfriado? Será que me energiza? É verdade que chuva lava a alma? Ou será que com a chuva somos igual a um tênis que leva uma semana para secar? Saí e me encharquei de vida. Senti-me como uma criança perguntadeira que ao chegar em casa levou bronca por participar de ações radicais ao querer entender o mundo com a própria experiência.


Então? O que fazer nos dias de chuva?

Aos 12 anos – comprar uma briga com a mãe, se recusar de ir para a escola e ficar na cama.

Quando apaixonada – recolher uma cesta de pingos e fritar bolinhos de chuva.

Quando bem acompanhado – colocar a capinha antes de fazer amor.

Se mulher – amaldiçoar os deuses do Olimpo que inventaram o cabelo indócil.

Se esquecido – procurar na agenda de telefones o número do disq guarda-chuvas.

Aos 32 anos – Trocar beijos carinhosos com a esposa, em casa, ao invés de trocar apertos de mãos com colegas no trabalho.

Se morador da periferia – espalhar baldes sob as goteiras.

Se vendedor ambulante – aumentar o tamanho da barraca e trocar o filtro solar por guarda-chuvas.

Quando de bem com a vida – ir para a janela e olhar as gotas apostarem corrida na vidraça.


Quando escoteiro – rezar para nunca mais chover nos dias de acampamento.

05 setembro 2016

Amor em demasia


Levanto-me depois do despertador tocar pela terceira vez. Abro a janela e a luz não chega até minha casa. Meu quarto está escuro, a casa está escura. Minha vida é escura.
Se eu não precisasse fazer o café, eu ficaria deitada para sempre. As crianças precisam de força para encarar mais um dia e João fica muito bravo se eu me atrasar.
Todos saem para trabalhar. Cabe-me lavar a louça de hoje e a de ontem à noite. Lavar, enxugar e guardar. Deixar tudo limpo e impecável para ser usado de novo. Todos os dias são iguais, sempre são a mesma coisa. Deixar tudo limpo e impecável para ser usado de novo. A pior sujeira é aquela que os olhos não veem. Os vestígios estão na cozinha, na sala e nos lençóis.
As xícaras não falam. O sofá não fala. Os travesseiros não falam. Mas eu escuto todos os gritos da casa.
João é forte, bonito e maravilhoso. Quase sempre traz um doce ou uma bijuteria para mim. Ele é insaciável. Quer me presentear todos os dias.
João não estudou. Trabalha duro e jamais faltou feijão na panela ou dinheiro para o aluguel. Dependemos dele. A única coisa que pede é amor. Diariamente.
Estou muito fraca. Já não consigo satisfazê-lo todos os dias. Ele se diverte com as crianças.
Já se passaram 20 anos de quando Joãozinho chorou pela primeira vez. Quando Nicinha completou 5 anos, também chorou. João nos amava.
Hoje, todos estão na rua trabalhando. Jamais ganhei um centavo, nem sei o que é ter patrão. Fico em casa enxugando louça e lágrimas.
Uma vez contei para uma vizinha. Mudamos de casa depois de uma semana. Carreguei geladeira e fogão mesmo toda enfaixada da surra que eu levei.
Já pensei em denunciar. Já pensei em envenenar João. E daí? Quem vai pagar o aluguel? Quem vai trazer pão e leite? Quem vai me vestir? Quem vai me dar pulseiras?
Já pensei em apagar a minha luz. Quem vai proteger Nicinha? Quem vai proteger Joãozinho?
Nossa casa é pequena. Nicinha e Joãozinho dividem o quarto e o pai. Nicinha coleciona brincos e Joãozinho está gordo de tantos doces. Silenciosamente, nos revezamos para repartir e amenizar o sofrimento. Somos prisioneiros e cúmplices do amor.
O despertador toca mais uma vez. A luz da janela não chega até minha casa. Tudo está escuro. Nossa vida é escura
 
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