28 junho 2016

Santos provocam estragos na minha alma


O ministério da agricultura deveria advertir que festas juninas podem ser danosas à saúde dos jardins.
Ontem fui a uma festa de São João promovida pela igreja de Santo Antônio. Era uma quermesse que visava a arrecadar fundos para um asilo de idosos.
Quando cheguei, a festa já rolava solta. As ruas próximas estavam congestionadas apesar do esforço dos guardas de trânsito. Foi impossível encontrar um lugar para estacionar. Os flanelinhas cobravam adiantado por uma vaga em cima do gramado da praça. Parei o carro quase em cima do banco, pertinho do coreto.
Toda a frente da igreja estava muito iluminada. Podia-se admirar a fachada, a escadaria e o bem cuidado canteiro de flores. O acesso para o público era em uma lateral, logo após as bilheterias. Os caixas vendiam a entrada e tíquetes para consumo nas barracas. Cada vale com um valor e uma cor diferente da outra.
Entrava-se por um extenso corredor até chegar ao campo de futebol dos seminaristas. E, conforme a tradição, as barracas foram montadas, uma do lado da outra, por dentro do alambrado, fechando as duas laterais do campo. Antigamente, a fogueira ocuparia o meio do campo. Agora, por motivos de segurança, queima o gramado atrás do gol e chamusca a minha alma.
No passado, todos iam caracterizados às festas juninas. Colocava-se uma calça de remendos coloridos, uma camisa xadrez e um chapéu de palha na cabeça. A irmã metia um vestido estampado de florzinhas, trançava o cabelo e sapecava umas sardas no rosto. Agora, só o pessoal das tendas se veste rigorosamente caipira.
Ontem, no meio da multidão, achei graça ver uma jovem madame desfilando lenço de seda, bolsa de grife, empáfia e um sapato de salto fino espetando o gramado e perfurando minha alma.
O cardápio foi variado: canjica, cachorro-quente, curau, pamonha, doce de batata-doce. Os pés-de-moleque eram especiais. Disputadíssimos! Graças à nova ortografia eram os últimos hifenizados. E a oferta culinária continuava com tapioca, milho cozido, churrasquinho, quentão, refrigerantes e cerveja. A noite era para os apaixonados, 12 de junho, dia dos namorados e por isso havia também a maçã-do-amor.
Enquanto eu comia uma canjica de amendoim, ri do comentário de um seminarista que disse que os bandeirinhas, com suas tradicionais roupas de luto, saíram das laterais e se vestiram nas cores do arco-íris. Transformaram-se em bandeirolas penduradas atravessando o campo.
A música já estava incluída, a gente nem precisava pagar. Aliás, era possível ouvi-la desde o outro bairro. Era uma dupla sertaneja, acompanhada de um acordeonista, um zabumbeiro, um pandeirista e um sujeitinho mirrado que ritmava uma haste de ferro em um triângulo metálico. Como é que se chama um tocador de triângulo? Trianguleiro? Triangulista? Ou mestre hipotenusa? Deixemos a dúvida para outro dia.
Festa de São João, das boas, tem casamento e muita dança.
Eu reparei que, quando cheguei na festança, havia grama em todo o campo. Conforme o povo se divertia, circulando pelas barracas, a grama foi rareando escapelando a minha alma. Na hora da quadrilha, a poeira subiu. Não se enxergava nada. Apesar do amor, da música e da poesia, João, Teresa, Raimundo, Maria, Joaquim, Lili e J. Pinto Fernandes não conseguiram se acertar. Não formaram par.
Nessa noite, eu poderia ter ficado impressionado com muitas coisas. Com o tamanho da barriga da noiva. Com a brabeza do noivo. Com a picardia do sermão do padre. Até com os garotos que chutavam sabugos na marca do pênalti. Mas não. O que me causou profundo impacto, foi tomar conhecimento do desespero das encalhadas.
Mais do que as mães zelosas, elas adorariam soltar fogos de artifício para comemorar pretendente fisgado.
Sempre no dia 12, dia dos namorados, véspera do dia de Santo Antônio, as solteiras ansiosas iniciam as simpatias para tentar entrar no time das casadas.
Cada uma à sua moda. Começam por rezar o pai-nosso e o salve-rainha, depois escondem a imagem do Santo Antônio atrás da porta da cozinha. Retiram o menino Jesus do colo do santo e ameaçam só devolvê-lo após um casamento consumado. Outras solteiras preferem amarrar a imagem sob a cama com a cabeça virada para baixo ou simplesmente colocá-lo, também de cabeça para baixo, dentro de um copo cheio de água. Algumas malucas jogam o milagreiro dentro de um poço.
Faltavam cinco minutinhos para a meia-noite quando algumas moças impetuosas, quase titias, optaram por enterrar imagens do Santo Antonio de cabeça para baixo, na frente da igreja. Exatamente no meio do canteiro das margaridas, sepultando a minha alma.

É por essas e outras, que as festas juninas podem ser prejudiciais à saúde dos gramados e jardins.

21 junho 2016

A advogada que tirou o escritor do buraco



A humanidade julga que a vida de um escritor seja a coisa mais fácil do mundo: basta acordar às dez da manhã tomar café, ler os jornais do dia, observar como está o tempo e sentar na frente do teclado para digitar o que sonhou durante a noite. Há quem pense que antes de começar a digitar o artista responde a e-mails dos fãs, seleciona alguns dos convites para entrevistas e estuda a participação de outros tantos convites para estrelar em feiras literárias ao redor do mundo. E ainda mais, que depois desta estafante tarefa cabe verificar quanto as editoras depositaram a título de adiantamento para a o próximo best seller.
Não é nada disso. Não há glamour, não há sucesso e não há dindim.
O buraco é mais embaixo. Bem abaixo.
A única alegria do autor é receber a informação de que foi selecionado por uma editora para participar de uma antologia. — YESSSSS! A antologia será a reunião de textos inéditos de primeira grandeza junto com outros autores também consagrados (o “também consagrados” bate fundo no ego) e rapidamente confirma a participação.
Uma semana depois recebe a cobrança de quinhentos reais para a publicação e envio de dez exemplares da antologia.
Quem escreve também deveria aprender a ler os contratos.
Todos os escritores que ainda não receberam nenhum Jabuti nem foram indicados para o Nobel da Literatura carecem de compensações pecuniária.Esse meu amigo já foi indicado, mas o jabuti era apenas um cágado.
Chega de lero-lero. Vamos aos fatos.
Apesar da triste situação financeira, a felicidade chegou quando uma renomada advogada resolveu adotá-lo como marido. O casamento foi uma bênção. Deixou de gastar dinheiro com mulheres e, nos restaurantes, passou a dividir a conta com a esposa.
Depois de seis meses ele resolveu quebrar o cofrinho de estimação para bancar uma primeira viagem. Numa superpromoção pagou metade de duas passagens para Fortaleza.
Tudo era alegria. Pegaram o avião às duas da matina – promoção é promoção.
Quando chegaram ao apartamento ficaram chocados ao ver duas camas de solteiro. Na mesma hora ligou para a portaria.
— Pô, meu irmão, fiz a reserva com trinta dias de antecedência, informei que era uma lua de mel. Cadê a cama de casal?
— Meu senhor, todos os quartos com camas de casal estão ocupados, desculpe. São quase cinco da manhã. Não tenho o que fazer agora. Prometo um up grade para amanhã. Talvez um quarto com janela.
Acabaram se acomodando como podiam.
Meia hora depois, as duas camas escorregaram e abriram um abismo. Ele se espatifou na queda.

A esposa, advogada de competência, estendeu a mão e o escritor medíocre saiu do buraco.

14 junho 2016

Medalhão de filé

Para o dia dos namorados resolvi fazer um jantarzinho romântico em casa.

Lembrei-me de um comentário, talvez pedido discreto, de que ela estava com saudades de comer um medalhão de filé.

Anotei os ingredientes e fui ao supermercado perto de casa. Dirigi-me direto ao expositor de carnes pensado em medalhões cortados, prontos para o consumo, mas não encontrei.

Procurei o moço das carnes.

­                — O senhor tem filé mignon?

— Não freguês, acabou tudo. Parece que hoje todo mundo só quer filé.

Por sorte eu ainda não tinha nenhuma compra no carrinho e a 50 metros havia um açougue. Nem precisaria pegar o carro.

Escolhi a menor das duas únicas peças restantes e pedi para limpar no capricho.

Voltei ao supermercado para comprar massa, queijo, creme de leite, mais algumas bobagens e o bacon em fatias.

Procura daqui, procura dali e nada de bacon fatiado. Próximo dos ingredientes para feijoada vi um funcionário do supermercado.

— Moço onde fica o bacon em fatias?

— Estamos em falta. Tem quatro meses que nenhum dos dois fornecedores trouxe.

Meio contrariado, escolhi uma embalagem com três pedaços de bacon e voltei para o balcão das carnes.

 — Será que o senhor pode fatiar para mim – mostrei o pacotinho.

— A minha serra está no conserto. - Respondeu com má vontade.

Finalizei as compras e fui à padaria perto de casa.

— E aí seu Inácio, tudo bem? Será que podia pedir pros meninos fatiarem o bacon para mim?

— Magnata, desculpe, mas só fatiamos e embalamos de manhã. Se você voltar aqui cedinho a gente faz rapidez. Posso ver o bacon?

Estendi o saco plástico.

— Esse negócio é muito mole. Não vai dar não. Vai ter de ser na faca. E precisa estar muito afiada.

Comprei um bolinho caseiro de chocolate, apenas como desculpa de ter ido à padaria, paguei e agradeci. Saí com os pedaços de bacon numa mão e um bolinho na outra imaginando que levaria umas duas horas para afiar a faca e outras duas horas para cortar umas fatiazinhas da grossura de um dedo.

— Tô ferrado. — Falei alto. - Como afiar a faca? — Continuei resmungando.

 Me lembrei da superhipermegagolden faca do açougue onde comprara o filé. E lá fui eu esperançoso de volta ao açougue.

O cara me reconheceu. Com maestria e rapidez fez um trabalho muito melhor do que eu seria capaz em um século.

— Yesssss. A felicidade até existe.

Cheguei em casa, guardei as compras e botei um vinho para resfriar.

Assim que a esposa chegou, contei feliz que teríamos medalhão de filé com linguini ao molho de gorgonzola.

Depois do beijo, apontei orgulhoso para o bacon e para os medalhões cortados.

— Amor, os meus, por favor, sem bacon.

Mesmo assim, à noitinha, dormimos colados igual ao bacon no medalhão.


13 junho 2016

Carniça

Carniça

Moisés Liporage
Editora Escrita Fina
168 páginas

(desculpe-me capista, acrescentei as margens, senão o livro branco flutuaria)



Conheci o autor em Brasília numa palestra promovida pelo SESC. Ele comentou que escrevera um livro com ironias, morbidez e doses de humor negro.
Foi o suficiente para provocar a minha curiosidade nesses tempos de perseguição aos politicamente incorretos.
Com o livro esgotado na livraria precisei comprar em sebo virtual. Observei que no meu exemplar não havia nenhum sinal externo de violência a não ser o título do livro escrito com sangue em alto-relevo.
Naturalmente li a primeira orelha.
“Qualquer um vive alerta diante dos muitos riscos que o cotidiano oferece. Só que, no caso de Gilberto dos Anjos, essa atenção beira a patologia. O problema dele é garantir que a morte demore muito a chegar. Por isso, ele construiu um bunker-sarcófago na região serrana do Rio.  
Sempre que se vê afligido por alguma suspeita de ameaça fatal, concreta ou abstrata, Dos Anjos sobe até seu retiro e se esconde das mil urucubacas que acredita rondá-lo de tempos em tempos.
A caminho de mais uma dessas temporadas de hibernação, Dos Anjos oferece carona a Estela, uma jovem grávida com um passado misterioso que, literalmente, a persegue com sede de vingança. Ao dar uma de bom samaritano, Gil, este sujeito supersticioso, acaba se arriscando de verdade. Sim, talvez ele tenha finalmente descoberto quando e como vai morrer.”
Fui fisgado por uma vontade incontrolável de seguir adiante.
Eu só pretendia dar uma olhadinha no livro recém-chegado pelos correios, mas aí ele – o livro – se mostrou mais provocativo ainda no prólogo de uma página com uma cena de repouso desenvolvendo um flash de uma conversa nervosa antevendo muita ação. 
Parecia um daqueles thrillers de cinema que se veem antes da exibição do filme que escolhemos e aguardamos.
E acabei levando-o comigo para a consulta médica. Li durante uma hora e detestei ser interrompido pela doutora me chamando na porta do consultório.
Os protagonistas óbvios da história são Gilberto dos Anjos, a grávida Estela, seus perseguidores e a morte que é muito mais do que uma simples personagem.
Para marcar os personagens, Moisé Liporage usa um artifício curioso. Gilberto por ser cinéfilo compara ações a cenas vivenciadas em dezenas de filmes e algumas músicas que mesmo o leigo em cinema consegue usufruir: “Gil foi até uma antiga juke box Wurlitzer e botou um hino de acasalamento cantado por Marvin Gaye”.

O chefe dos perseguidores, o caolho Waldick Sabá, além de ser um cruel matador e cafetão era useiro de clichês e citações. A desenvoltura era tamanha que foi imitado pelos comparsas Marciano Sequelado, Torquato, Clemerson, Jonatan e também pelo narrador.
“Não é à toa que neginho diz que vingança é um prato que se come frio. A comida esfria porque você tem que esperar o momento certo para meter o garfo”.
“Mudava de um pensamento para outro como um Tarzan trocando de cipós”.
O narrador mistura besteirol com pensamentos profundos em que as ações por mais dramáticas que sejam ganham pitadas de humor. Ás vezes negro.
“Dos Anjos se perguntava como foi possível esfarelar em alguns segundos toda uma infraestrutura de fuga e hibernação tão bem planejada. Sua cisma se justificava. O nimbo-cúmulos do seu cagaço de morrer ganhava novos contornos e assumia as formas daquela prostituta grávida. Qual era a explicação para uma fortaleza de raciocínio autopreservativo ter ruído daquela maneira? Como suas sólidas fundações ganharam a consistência e a densidade de uma paçoca?
“Estela amassou a comida no prato, enquanto pensava no assunto. Como se, junto com a chegada do ovo e da galinha, aquele fosse um dos grandes mistérios da humanidade”.
Ou humor negro:
“Seu sorridente inimigo tinha a postura letal de uma granada com o pino puxado”.
“Algo escapuliu do bolso de sua camisa, quicou no piso de madeira, bateu na parede e voltou rolando até parar bem próximo ao seu rosto. Parecia uma bola de gude.
Mas era um olho.
Aquilo indicava que, mesmo depois de morto, Waldick ainda era capaz de repreendê-lo com olhar de sarcasmo.”

Se a história se fosse um filme, seria um filme nacional tecnicamente malfeito (propositadamente), mas considerado bom é a definição para um filme trash. As ações espetaculares de capotamento, perseguição de cachorros, explosões e fugas miraculosas ao invés de causar espanto, causam riso.

Há questões não respondidas:
Gil, numa queda, enfiou a cara numa poça repugnante, vomitou e continuou na fuga. Acostumou-se com o cheiro ou se limpou escondido do leitor?
Se ninguém tinha acesso ao bunker isolado, como eram alimentados os três ferozes cães?
Pouco importam as respostas. Isso é irrelevante numa história trash.
Mas uma passagem, particularmente, chamou-me à atenção:
Gilberto diz a Estela que há gente muito mais mórbida do que ele e que chegam a comprar esqueletos humanos em Oklahoma. Completa informando as diferenças de preços entre um crânio com dentição e outro sem.
Ela pergunta como ele sabe disso tudo e ele responde:
— “Eu não acompanho o campeonato brasileiro”.


Foi essa a resposta que imaginei que a minha médica, no retorno à consulta, daria depois de mil explicações convincentes sobre a minha dor de barriga.

07 junho 2016

Desculpas ao chefe



POR QUE VOCÊ FALTOU NO TRABALHO ONTEM?



11 -      Ninguém me avisou que tinha de vir todos os dias.
2
-2 -     O senhor sabe, eu moro no quinto andar. Faltou energia. Como é que eu ia descer aquilo tudo com a minha unha encravada?

33 -      Meu avô é italiano. Desde criança sempre tive uma identificação muito forte com ele e ontem foi feriado em Nápoles.

44 -      Ué, sempre diz que não sou nada. Pensei que o senhor não fosse sentir a minha falta.
5
  5 - Depois do banho descobri que não tinha toalha no banheiro. O senhor não queria que eu viesse molhado. Queria?

66 -      Eu perdi a hora. Acordei mais tarde e aí pensei que fosse domingo.

77 -      Mas chefe, eu vim ontem! O senhor é que não me viu. Eu estava com uma dor de barriga tão forte que passei o dia trancado no banheiro.

88 -      É que para dar maior credibilidade aos relatórios eu só escrevo com minha caneta de pena dourada. Acabou a tinta e passei o dia procurando comprar um tinteiro.

99 -      É que a minha mulher não dirige e insistiu muito que a levasse ao shopping.  Ela precisava comprar aquela bolsa. Ontem foi o primeiro dia da promoção.

110 -   Ontem aconteceu uma tragédia. A empresa exige que a gente venha trabalhar de terno.  A minha mulher viajou e não tinha quem desse o nó da minha gravata. O senhor não ia querer que eu procurasse a minha vizinha, não é mesmo?

111 -   Se eu dissesse que acordei com uma enorme dor de dente e que fui ao dentista o senhor não iria acreditar. Iria? Por isso mesmo vou inventar que fiquei na cama dormindo dia todo.


112 -   Entrei em depressão. Passei o dia no quarto escuro. Ainda estou chocado com a informação: Papai Noel não existe.
 
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