23 dezembro 2016

Caixas de natal

Há vários dias eu procuro uma mensagem que traduza meus sentimentos do Natal.
O amigo Marco Antunes colocou-os em versos.
E, com esses versos desejo que nesse dia especial todos desembrulhem o espírito natalino encaixotado desde janeiro passado.  Feliz Natal!


CAIXAS DE NATAL



Poema de Marco Antunes.

A verdade é que já não sei mais 
tirar das caixas o Natal
como fazíamos anos atrás. 

Era um não mais parar de descer caixas
guardadas em lugares altos da casa
durante os meses tristes do ano.

E todas eram caixas de sonhos:
redondas, compridas, largas
ou em formas improváveis de estrelas,
mas sempre cada uma revestida
de flores, de cestas de flores,
de pássaros que voavam fitas,
de anjinhos instrumentistas,
de formas natalinas e brilhos e
de moças antigas com sombrinhas de renda... 

As caixas em si já eram o Natal
ou seu presságio e, quando abertas,
libertavam todas as esperanças
de frutos de cristal e pinhas de ouro.

A primeira delas,
pouco maior que uma caixa de sapatos,
revestida de estrelinhas, luas e sóis,
guardava lampadinhas coloridas
e era dever e privilégio de meu pai abrir.
Abrir e desenrolar o novelo de fio verde
que escorria pela sala até o corredor
enquanto, na outra ponta,
meu pai, muito sério, solene e preocupado,
fazia o primeiro teste na tomada... 

Ah! Que bonito que era! 
Porque em menos de um segundo,
as dezenas de cores se acendiam
como um rio de felicidade
que corria pela sala e lambia o corredor,
convidando o resto da casa para a festa que começava.

Claro que, no percurso da luz,
sempre uma ou outra morrera
durante o ano no silêncio dos armários,
mas a doce providência daquele homem,
tirava dos bolsos novos lumes e a festa prosseguia.

A segunda caixa era imensa,
talvez a mais feia delas,
porque de um reles papelão
onde apenas se lia "Made in England"
mas de dentro, saía ainda encolhida,
ramos tímidos, amassados,
a velha árvore de tantos natais.

Depois de despertada do seu sono,
revividos os ramos, desamassadas as folhinhas,
ela se revelava frondosa e de um verde perfeito
que para sempre, onde surgisse, seria dela
o verde da velho pinheiro inglês
que nos floria os natais. 
 
Desapertá-lo era uma tarefa de todos
e a ela nos dedicávamos alvoroçados
felizes de, enfim, sermos chamados a ajudar. 


A terceira caixa, muito fina, mas larguíssima, 
se recobria de um papel prateado 
com desenhos infinitos de flocos de neve, 
dentro, os lamentos ficavam congelados 
à espera desse dia em que viriam, depois das lâmpadas, 
adornar nosso pinheiro dando-lhe uma remota
aparência de neve, neve da lembrança dos avós, 
neve que não havia em nosso Natal. 

Esses lamentos de prata 
eram a delícia dos dedos nessa festa
porque nada, nunca em nossa vida 
jamais seria tão macio 
quanto aqueles fios
de leveza imponderável... 

E chamavam-se lamentos!
(Tudo era poesia em nosso Natal!)

A quarta caixa, grande e redonda,
tinha moças antigas em fundo rosa
passeando como num romance antigo
ou se balançando em lindos cordões de flores.

Essa era a mais aguardada das caixas,
porque não regateava cores e brilhos
todos impossíveis depois do Natal.

Minha mãe sabia desse potencial mistério
e demorava, e demorava muito
em nos presentear de vez,
abrindo a tampa com descabido cuidado,
como se um descuido qualquer
pudesse pôr tudo a perder,
ansiosos, todos nós, inclusive meu pai,
que nunca deu pelo estratagema,
abaixávamos a cabeça
para ver já pela primeira fresta
uma miríade de bolas coloridas reluzentes
que eram frutos transcendentais desse pomar natalino. 



Nossos olhos de criança
descobriam-se refletidos em rostos redondos
nos globinhos soprados em vidro tão fino
que se diria poderem pairar entre os galhos
sem auxílio de fios.

Ah! Que tristeza pelas bolas que se quebraram
e curiosidade pelos caquinhos restados,
como se, de repente, víssemos a anatomia dos sonhos!

Minha avó, sentada em sua cadeira de balanço,
ia pondo o fio de linha dourada em cada uma das bolas
e de suas mãos colhíamos a felicidade para dispor nos galhos.
os mais altos meu pai alcançava sozinho,
mas para lá iam somente as bolinhas
pequenas, dessas que as crianças não disputavam!

A essa altura, já era a toda prova, uma árvore de Natal
e nós nos afastávamos todos
para ver de longe como estava ficando a obra.
Maria vinha da cozinha com guaraná e biscoitos
que eram um modo de convidar o paladar
à alegria!

A sexta caixa era a dos pássaros e fitas
e nela se guardavam os enfeites variados
sua abertura era o requinte da euforia:
pássaros de vidro, pingentes de cristal,
sinos dourados, bengalinhas listradas,
anjinhos de porcelana, soldadinhos de madeira,
janelinhas enfeitadas, guirlandas de flores,
corações de rendas pedras preciosas,
pombinhos de purpurina branca,
igrejinhas, casinhas, trenós, renas e Papai Noel.

A árvore resplandecia então de mil histórias
com que a fomos enfeitando em cada peça.
era o melhor do mundo em nossa sala de estar!

Então, meu avô e só ele, abria a caixa grande
dos anjinhos instrumentistas e de lá tirava
uma a uma com respeito e reverência as
figuras da natividade
e todo ano
Com a mesma paciência
nos contava a história do menino Jesus,
o último a ir para o presépio
e todo ano ouvíamos como se fosse a primeira vez. 


Por fim de uma caixa comprida

revestida de flores,
saía, ainda coberta de papel de seda
a longa e bela ponteira,
que era o auge e o fim da festa.

Meu pai pegava um de nós
"ao acaso"
e naquele ano,
suspendia para glória o felizardo
que a colocava no topo da árvore
e minha mãe ligava as luzes
enquanto vovó e vovô já
cantavam baixinho "Noite Feliz".


Procuro entre minhas lembranças esses tesouros
guardados em caixas no meu coração
como se fossem minhas Rosebuds
onde foram parar as caixas
em que ainda estão guardados todos aqueles natais
Onde?
Onde foram parar as caixas em que ainda ontem
Nós guardamos pela última vez a felicidade?

13 dezembro 2016

Precisa-se advogado



Coloquei anúncios e solicitei currículos a meus amigos. Eu precisava de um outro advogado para o meu escritório. Passei a peneira e selecionei apenas alguns poucos candidatos.

Eu buscava algum relativamente novo, com alguma experiência em análise e elaboração de contratos. Queria alguém estudioso, que tivesse passado no exame da ordem. Tanto fazia homem ou mulher. Pouco me importavam os conceitos alto, gordo, moreno, nariguda ou elegante.

O primeiro foi muito eloquente dentro de um terno impecável.

O segundo, que trajava uma gravata listrada azul e vermelha, se mostrou experiente, trabalhara um bom período defendendo uma empresa dos consumidores.

Em terceiro se apresentou  uma moça com saltos finos e vestido pouco acima dos joelhos, usava óculos discretos que confirmavam a seriedade no linguajar de advogada experiente.

O quarto candidato, um sujeito que nem pensei que viera para a entrevista. Combinava a bermuda preta com a camiseta estampada com a cara de morcego do Gene Simmons do Kiss.

— O que deseja?


A resposta veio direta, objetiva, seca, na lata, sem rodeios.
Apontou para o chão com o indicador em riste.

— Trabalhar aqui.

Apavorado com a ideia de um roqueiro hard rock numa casa clássica, perguntei:

— O que tem na cabeça?

Com a mesma segurança e desenvoltura voltou as duas mãos para cima.

— Cabelos verdes, uma tatoo tribal na testa, um piercing na narina e dois alargadores nas orelhas.


— Sinto muito. Advogado não é nome de banda. — Abri a porta. —  Próximo por, favor

11 dezembro 2016

Entrevista na Rádio Senado

Foi ar hoje a minha entrevista à Rádio Senado.
De tão boa, rendeu e-mails para aquisição do Manual do escritor.
Obrigado, Margarida Patriota.


Autores e Livros
Entrevistas sobre o mundo da literatura na Rádio Senado
Apresentação: Margarida Patriota
Produção: Samara Sadeck e Marina Domingos

Sábado, às 17h, com reprise no domingo, às 9h

http://www12.senado.leg.br/radio/1/autores-e-livros

05 dezembro 2016

Ousei participar de um Festival de Contação de Histórias em Goiás.
Mandei um vídeo e minha interpretação foi classificada entre os finalistas.
Meu prêmio foi conseguir decorar um texto e dizê-lo em público.
Eu me diverti e fiquei orgulhoso por perder para uma interpretação para o Apólogo, um conto do Machado de Assis.
Eis o conto:



A velha e o fogo

A velha ateava fogo em alguns papéis. Numa das mãos, um jornal servindo de tocha e na outra um galho para cutucar a papelada. Foi só no que reparei.
Não. Eu reparei que ela usava umas roupas estranhas, algo como um vestido sobre outro. Talvez um vestido sobre uma camisola. Usava uma touca artesanal, de crochê claro. Não pude ver o rosto. As mãos eram bem alvas, assim como os tornozelos acima das meias brancas que calçavam um par de sandálias de dedo.
            Passei por ela e segui o meu caminho. Para mim, foi apenas uma figura esquisita em roupas azuis desbotadas queimando pertences num local afastado, um atalho entre o meu prédio e a larga avenida.
            Quando entrei no Eixão, o sol esquentou e revi mentalmente aquela senhora incendiária. Prestei atenção na figura e passei a divagar.
            Primeiro, sorri com ternura imaginando que a meiga anciã devia estar enviando mensagens para o céu com a fumaça. Julguei que seriam poemas saudosos, escritos com letrinhas tremidas, após a dolorosa separação quando o marido partiu em viagem para o infinito. Imaginei recordações em longas cartas lembrando o nascimento dos três filhos, a alegria da viagem ao Rio de Janeiro, quando juntos rezaram ao pé do Cristo no alto da cidade. Imaginei a frágil senhora enviando aos céus a receita das empadinhas de palmito, favoritas do finado, para que algum anjo cozinheiro lhe recordasse as delícias terrenas. Fantasiei procurando captar o sonho da paixão de um jubileu dourado.
            Quase fui atropelado por uma bicicleta que vinha em sentido contrário. O susto acordou-me dos devaneios e levou-me a refletir que os papéis queimados poderiam ter sido escritos pelo saudoso marido. Quem sabe agora, às vésperas de mudança de endereço, quisesse evitar que os filhos soubessem como o casal se amara com volúpia, ao contrário da inocência dos filhos, que sempre julgaram ter pais pudicos por terem praticado sexo apenas nas três únicas vezes em que geraram os três únicos filhos. Ninguém mais acredita em Papai Noel, mas os filhos sempre acreditam em pais castos, puros e assexuados.
            Naquele momento também ri. Ri de mim, por acreditar em Papai Noel e em sinceras declarações apaixonadas. A mulher devia estar apagando o passado de fogo ardente. Isso faria muito mais sentido. Passei a imaginar confissões de lascívia e luxúria de um amor adolescente. Não, isto não justificaria sair de casa num domingo de manhã, para atear fogo nas relíquias, longe dos olhos da família. A velhinha, pensei, deve querer ocultar, para sempre, pecados mais fortes. Decerto, cartas do amante. Manuscritos que revelavam promessas, desejos e realizações. Linhas anunciando palavras ditas sob as cobertas. Ali estaria o envelope com o nome e endereço completo do amante. Ali estaria uma fotografia do casal adúltero, numa tarde de outono. A família e a sociedade jamais poderiam saber daqueles poentes escaldantes. Ali, no meio da fogueira, estaria a carta com a surpresa e alegria do amante ao saber que seria pai.
            A cada passo que eu avançava a velhinha rejuvenescia nos meus pensamentos. Ficava mais bonita, sensual e atraente.
            Agora, idosa e dependente, às vésperas de mudar para a casa do filho bastardo, todos os seus pertences ficariam expostos. Inclusive a verdade, guardada na caixa de papelão rosa. O receio da rejeição e o temor de ser enviada para um asilo a faziam queimar o passado.
            Durante uma hora e meia caminhei pensando na velhinha e nos seus doces ou picantes segredos matrimoniais. Quando saí do Eixão, a curiosidade era tão grande que resolvi verificar se sobrara alguma coisa legível naquelas cinzas.
Durante uma hora e meia caminhei pensando na velhinha e nos seus doces ou picantes segredos matrimoniais. Quando saí do Eixão, a curiosidade era tão grande que resolvi verificar se sobrara alguma coisa legível naquelas cinzas.
— Foi aí que o senhor, seu delegado, apareceu e me flagrou com aquele crânio fumegante nas mãos.

29 novembro 2016

Nome do personagem

Estou orgulhoso com a ótima aceitação do Manual do escritor.
Recebo inúmeras encomendas do Brasil afora.


2.6.1  Nome do personagem
Os nomes dos personagens são tão importantes nos livros que às vezes pulam das páginas para a capa: Dom Casmurro, Lolita, Cinderela, Iracema, Hamlet, Ulysses.
Para os pais é difícil escolher um nome para o filho. O autor vivencia responsabilidade semelhante.
Ao nomear um personagem você o está credenciando.

► Você batiza o personagem com o intuito de representar suas características ou de reforçá-las.

Considere a sonoridade do nome, a individualidade do personagem. Evite nomes semelhantes no mesmo enredo (Os inúmeros Aurelianos Buendía de Cem anos de solidão confundiram a minha leitura!). Perceba que apelidos derivativos e contrações facilitam a vida do escritor ao esquivar-se de repeti-lo.
Na vida real jamais soube de alguém chamado Caim. Certamente nenhum pai quis atribuir a fama de assassino a um filho. Na escrita, Clara nunca será negra. Jesus é contraditório para um assassino. Apelido de bandido será sem diminutivo. Fritz não será índio, nem japonês.
Há vários com simbologia marcante: Inocêncio (inocência), Júnior (filho), Joana D’Arc (mártir), Cornélio (traído), Florêncio (afeminado), Modesto (modesto) , Ítalo (italiano), Moisés (profeta, libertador). Nem sempre as cargas são óbvias ou perceptivas. Cuidado para não utilizar um nome “gasto” com simbolismos diferentes daqueles do seu personagem.

No conto Pai contra mãe de Machado de Assis há quatro personagens:
Tia Mônica – derivativo de mono, mulher solitária;
Cândido Neves – ironia e brancura;
Clara – uma mulher branca;
Arminda – a que tem armas.

Em Vidas Secas de Graciliano Ramos há muita desgraça. Tanta desgraça que os personagens reagem como bichos. Exceto o cachorro, Baleia, que tem caráter humano. Conforme Câmara Cascudo, era comum que os cachorros fossem batizados, por superstição, com nomes de peixes – Tubarão, Piranha, Cação, Toninha – intencionando afastar a raiva, ou hidrofobia se preferir (peixe não tem medo de água).
Fabiano é o chefe da família dos retirantes. Dele há apenas a descrição modesta de ter barba ruiva e castigada pelo sol, mãos grossas e calejadas, pés duros, mostrando assim um tipo exemplar castigado pela rudeza do sertão. A característica de Fabiano é realçada pela falta de sobrenome. Como um “cabra” que sequer tem nome de família. Curiosamente Fabiano destoa no sertão. Graciliano sabia das coisas. O Dicionário Aurélio sugere sinônimos possíveis da palavra fabiano: indivíduo inofensivo e pobre-diabo.
Sinhá Vitória, a mulher de Fabiano, sonha apenas ter uma cama de varas; sofre, mas não esmorece, justificativa para o nome.
Os filhos, tão desprezíveis pelo sofrimento, tão bichos selvagens, sequer têm nomes.
Em Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, as escolhas também são exemplares: Dona Flor, flor de pessoa, feminina e cheirosa. O primeiro marido, o malandro e vadio, só poderia ser Vadinho. O segundo marido, recatado, pacífico e respeitado farmacêutico, é o Dr. Teodoro Madureira, sugerindo religiosidade (téo) e maturidade.
Branca de Neve sugestiona inocência. Na história hollywoodiana os anões ganharam predicados do bem. No original eram sete anões como também eram sete os pecados capitais. Soneca (preguiça), o tímido Dengoso (luxúria), Feliz (gula), Atchim (avareza), Mestre (soberba), Zangado (ira) e o mudo e imberbe Dunga que invejava a fala e a barba dos outros anões.

Quadrilha – Carlos Drummond de Andrade – poema
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Observe os nomes e a relação entre eles. Leia de novo. São comuns como gente comum. Apenas J. Pinto Fernandes não tem prenome, porém dois sobrenomes, um deles evocando virilidade, por isso conquistou e casou-se. E por ter nome diferente é que não havia entrado na história.
       
A escolha, preferencialmente, deve guardar uma relação com as características dos personagens, identificação por região, etnia, profissão ou o que o autor inventar:
Sertanejos: Severino, Capistrano, Zé da Caatinga, Maria da Zefa;
Judeus: Abrão, Ester, Raquel, Moisés, Jacó, Sara;
Interplanetários: Zagt Lobxdyp, Mestre Jedi Ikrit, Spock e o irmão Sybok;
Burgueses brasileiros: Albuquerque do Porto, Junqueira do Nascimento e Silva – com sobrenomes duplos ou triplos unidos por elementos de ligação;
Índios brasileiros e norte-americanos: Acauã, Guaraci, Janaína, Pena Branca, Touro Sentado, Pequeno Lobo;
Franceses: Pierre, Jean-Marie, François, Nicole, Olivier;
Bíblicos: Sansão, Dalila, Abel, Adão, Eva, Madalena;
Marcas físicas: Cicatriz, Japa, Cabeção, Ferrugem, Loiruda.

Faça do nome uma escolha inteligente.


Peça o seu exemplar inbox ou por r-klotz@uol.com.br     apenas R$ 40,00

28 novembro 2016


Liturgia do fim

Marília Arnaud

Editora Alaúde – selo Tordesilhas
R$ 30,00
250 páginas

Há quem goste de rabada com agrião. Há quem considere buchada de bode um prato dos deuses.  Aos vegetarianos a picanha mal passada é um sacrilégio. Para outros, o camarão ao alho e óleo causa urticária. Cada comensal tem seu próprio paladar. Assim, posso dizer que este livro não é um bife com arroz, ovo e batatas fritas. Não é um prato para o dia a dia, não é um prato comum e de gosto consensual.
É para quem gosta de comida com muito condimento. E a cozinheira, digo autora, salpica poesia em todas as páginas, parágrafos, linhas.  Em alguns lugares, para o meu paladar, parece que a tampa do vidro da especiaria caiu e exagerou o sabor.  “Costumávamos fazer longos passeios pela praia, afundando na areia dourada os pés descalços, lambidos de espuma, sentindo na pele a calidez do sol, escutando o estrugi monótono do quebrar das ondas.”.
Em resumo trata-se de história onde Inácio é expulso da casa da fazenda pelo pai. Ele se forma em Letras, se casa com Ieda, tem uma filha Isabel, mas, introvertido, jamais consegue lidar com as pessoas à sua volta. Está ensimesmado com o passado na fazenda Perdição. O motivo da expulsão não fica claro para o leitor. Tampouco está totalmente resolvido para o protagonista. A história, mistura de recordações e fluxos de pensamentos, avança lentamente. A cada dez passos para frente, voltam-se nove passos. São muitas as pistas fornecidas para conhecermos a motivação para o desentendimento. Marília Arnaud nos conduz com maestria e só nas últimas páginas revela todo o segredo. A originalidade do final é estarrecedora. Vale todo o sacrifício de uma leitura floreada de vais e voltas.
Ao falar do protagonista, Inácio Boaventura, a linguagem parece-me muito feminina, não me convence para um narrador masculino, mesmo que escritor e poeta de profissão. Ao lirismo acrescentou dezenas de adjetivos e advérbios.
“Rasgou-me o peito súbita vontade de chorar, por mamãe e Ifigênia, por todas as coisas que tinham deixado de ver, o brilho das manhãs, as ondas verdes nas encostas, o voo nupcial da rainhas ao entardecer,  o debrum alaranjado do sol se pondo atrás das serras, a imensidão das noites enluaradas, por tudo o que não mais podiam sentir, o vento no rosto, o perfume das catleias, o calor do sangue a lhe correr nas veias, pelo que tinham deixado de ser e no que se transformariam, pedaços de carnes devorados pelos vermes, húmus a nutrir o solo.”.
“Confinado atrás de muros intransponíveis de raiva e impotência, eu ousava me comparar a eles, na medida em que o fogo secreto, a sarça ardente que os iluminava e aquecia era a mesma que me esbraseava a raiz mais funda da vida, ali onde principiava a angústia da carne, onde latejava o mistério da alma, alma minha, de onde me fora arrancada uma fatia significante – é verdade que nos acostumamos com qualquer coisa, com qualquer situação, por mais dura, mais aflitiva ou humilhante que seja, e na noite mais espessa acabamos por enxergar pontos luminosos.”.
Entretanto, Marília Arnaud é espetacular em algumas descrições, como quando apresenta o cenário de Joaquim Boaventura, o pai de Inácio.
 “Sobre o centro, o tabuleiro de gamão e a Bíblia aberta nos salmos. Pendurado num armador de rede, um macacão de apicultor. E a cadeira de balanço de papai, trono de um rei sombrio, soberano de um país perdido nas brenhas de uma serra, senhor de todas as coisas existentes em derredor e a partir de si, a casa e as pessoas que a habitavam, a terra e a água, as pedras e as árvores, o animais e as lavouras, as flores e as abelhas, e ainda o silêncio e a palavra, a última palavra.”.
Depois de um parágrafo como esse. Precisamos aplaudir.
E assim, com alguns açúcares na receita, vamos digerindo a narrativa.
Marília Arnaud, a cozinheira, sem que percebêssemos, acrescentou folhas de erva-santa ao prato. A erva-santa ou erva-do-bicho confere sabor amargo. Primeiro algumas poucas folhas esmigalhadas. E, por fim, quando já estávamos familiarizados com o paladar, imaginando o café sem açúcar, ela se utilizou de várias folhas da erva, causando um desfecho surpreendente onde, passados alguns dias ainda sentimos o gosto amargo.

Se eu recomendo? Sim se você for poeta ou gosta muito de literatura. Caso contrário, tente entender a história, pule algumas páginas e se surpreenda com o desfecho.

09 novembro 2016



Roberto Klotz lança 'Manual do escritor', com dicas para aprimorar escrita
A obra tem texto leve e fluido. Veja, abaixo, algumas ferramentas divulgadas pelo escritor
postado em 09/112016 07:00

Isabella de Andrade – Especial para o Correio



 
"A técnica não serviria de nada para a pessoa sem talento, mas aumenta o alcance de quem a possui" Roberto Klotz, escritor.





Com um texto leve, fluido e bem-humorado, Roberto Klotz escreveu seu sexto livro, o Manual do escritor, para compartilhar suas experiências literárias com novos escritores. Ao longo das páginas, o leitor encontra, além de dicas e ferramentas para melhorar cada vez mais sua escrita, alguns caminhos que podem facilitar a publicação do tão desejado primeiro livro.

A ideia básica é de que pequenas mudanças fazem diferença entre autores bem-sucedidos e que a técnica de nada serviria sem talento, sendo apenas um meio para potencializar o alcance de quem o possui. A leitura de seu manual é convidativa e promete sinalizar caminhos importantes para o bom uso das palavras. Em cada rodapé das páginas, o leitor encontra um pensamento ou curiosidade sobre a escrita, ditos por uma grande variedade de autores através do tempo.
Em seus títulos anteriores o humor se mostra como uma de suas características recorrentes. Roberto Klotz já lançou Pepino e farofa(crônicas), Quase pisei! (crônicas), Cara de crachá (conto), A bruxinha que queria ser fada (infantil), O monstro da caixa azul (infantil) e afirma que escrever ficção é algo que vem da vontade humana em imaginar outras vidas, outros personagens, transformando as ideias em histórias. “Conhecer as regras é fundamental. Entender os processos e as técnicas, mesmo sem usá-las, abre oportunidades. Entretanto, cada autor institui suas próprias normas de criação.” Klotz disponibilizou tudo o que conhece e que considera mais importante para um escritor, não apenas técnicas literárias: os profissionais necessários à publicação, editores, mercado editorial, autopublicação, marketing, vendas.

O autor brasiliense nunca havia escrito um conto ou crônica até 2003, quando resolveu entrar no mundo da escrita. Desde então, Klotz considerava que era preciso ter uma base sólida e conhecimento literário. Ele iniciou os estudos específicos e começou a arquivar aquilo que considerava mais importante para o crescimento pessoal na escrita, além de ler o maior número possível de clássicos e participar de oficinas literárias. “Quando me dei conta, havia escrito apostilas para ministrar palestras e oficinas. Precisei elaborar uma cartilha e, quando percebi, tinha redigido um manual com mais de 200 páginas”, conta.
Possibilidades

O ponto mais importante de qualquer obra literária, de acordo com o autor, seria o ser humano, o desenvolvimento do personagem. Existem inúmeras possibilidades para criar personagens: características físicas, personalidade, meio social, ambiente geográfico, época, sendo ele sempre rico em possibilidades. Klotz dá a dica para a criação de bons seres literários: “Ao criar um personagem imagine que ele tenha um segredo.  O diretor da escola esconde que foi mau aluno; a gerente de supermercado suprimiu do currículo a condenação por furto; o marido sublima a atração pela cunhada... Estas serão as fraquezas dos personagens. Personagem forte é o que tem qualidades e defeitos”.

O autor destaca que o aprendizado e o conhecimento da escrita não engessarão os modelos de criação, e sim, pode oferecer ferramentas para somar e aprimorar estilos de escrita já presentes. “Existem academias para aprimorar os dançarinos, conservatórios para ensinar as técnicas aos músicos, escolas de belas artes para desenvolver a pintura dos artistas plásticos. Assim é com a escrita: pode e deve ser aprimorada com a técnica”, afirma.
Fique de olho 

·         A pesquisa evita que escrevamos bobagens.
·         O personagem precisa ter motivação. Objetivos provocam conflitos e conflitos movem a narrativa.
·         Todos os personagens têm vulnerabilidades.
·         Credenciar é habilitar o personagem antes do conflito em que alguma característica seja importante.
·         Na literatura pode-se mentir; é proibido falsificar. Parte do trabalho do escritor é tornar plausível o que não é razoável.
·         Conflito é a questão que motiva a narrativa.
·         A palavra certa é meio caminho para transmitir o subtexto.
·         Tenha meta e prazo.
·         Vários autores, por descuido na revisão, em vez de orgulho, passaram a ter vergonha dos próprios livros após a publicação.

Trecho

Você precisa dar o primeiro passo, mas com um plano para chegar ao destino. Escrever é como entrar numa guerra. Exige estratégia, planejamento e arsenal. Saiba as táticas. Camufle a estratégia. Conheça o cenário da luta. Tenha inúmeras armas literárias. Estude antes de entrar na luta: descubra como são e como pensam os protagonistas e os antagonistas. E, principalmente, saiba com profundidade qual é o motivo da guerra, digo, do conflito entre os personagens. Na vida e na escrita, “quando se ignora para onde ir, qualquer caminho serve”. Então, quanto mais detalhar a história, melhor poderá visualizá-la e realizá-la.

SERVIÇO

Manual do escritor
Lançamento do livro, hoje, no Carpe Diem da 104 Sul, a partir das 18h30. O livro estará à venda por R$ 40 e as vendas seguem, após o lançamento, apenas diretamente com o autor. Para adquirir o livro basta entrar em contato: r-klotz@uol.com.br.
 
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