20 abril 2015

Homo brasiliensis




— Cobogó? Que diabos é isso?
Evito prestar atenção à conversa alheia. Entretanto, às vezes é impossível não ouvir.
Eu voltava para Brasília sentado na poltrona do meio. Logo atrás de mim, naquele voo lotado, estava uma mulher vistosa, nos seus trinta anos. Entendi que ela desconhecia Brasília e recebeu um convite para trabalhar na Capital. Ela queria saber como as pessoas moram em Brasília e encontrou na cadeira vizinha um candango falante que deve ter sido guia turístico. Ambos falavam alto, o que tirou a atenção da minha leitura.
A primeira frase que ouvi, foi dele.
— Os ricos moram no lago. Os bem ricos, numa ponta de picolé.
— Como é? — Indagou a mulher, formando rima.
— As pessoas mais endinheiradas moram próximas do lago. Os terrenos enormes que ficam nas margens são chamados pontas de picolé. Somente esses têm o privilégio do acesso à água. Acredito que o melhor lugar para morar é no Plano.
— As margens do lago são muito íngremes?
— Não. Por quê?
— Você disse que preferia morar em lugar plano.
O vizinho, imagino, deu um sorriso, explicou que se referia ao Plano Piloto e falou das Asas Sul e Norte, arrematando que as mais valorizadas eram as 100 e as 300.
Naturalmente, ela deve ter feito cara de dúvida, pois ele disse que as quadras 100 e 300 ficam a oeste do Eixão.
Continuei sentado no meu lugar, preso ao cinto de segurança, mas com uma enorme vontade de olhar para trás para ver a cara de interrogação da mulher.
— Eixão?
O avião deu uma chacoalhada, de modo que perdi aquela explanação. Ouvi outra, já pela metade.
— ... os melhores apartamentos são os mais antigos, são amplos e vazados.
— E o que é um apartamento vazado?
O candango chegou a ser irritante com sua longa e apaixonada explicação.
— Os prédios, conhecidos por blocos, ficam deitados. São compridos em vez de altos. O que faz com que haja maior número de apartamentos no mesmo andar e provoca menos áreas externas, logo há muitos apartamentos com apenas uma frente. Os antigos são ventilados: têm frente e fundo do lado oposto. São os vazados. Todos os apês antigos têm cobogó.
— Cobogó? Que é isso? Tenha dó! — Exclamou em nova rima.
Adoro essa palavra formada pela primeira sílaba dos nomes de três engenheiros que criaram uma parede de tijolos decorativos que permite ventilação e entrada de luz natural. De modo que só ouvi o final da frase do vizinho falante.
— ... além do quê, são impressões digitais da cidade.
Daí, ela perguntou qual era o prato típico da cidade.
E ele foi muito criativo na resposta.
— Não há nenhum prato típico porque os moradores têm origem em todas as regiões brasileiras. Na cidade, encontramos todos os temperos. Não há prato nem forma comum de preparar alguma iguaria. É usual a reunião das pessoas em torno de uma churrasqueira. Cada um assando a carne ou peixe a seu modo.
Em quase todas as casas do Lago há churrasqueiras. Quase todos os clubes construíram churrasqueiras e também há muitas espalhadas nos parques públicos. O churrasco agrega as pessoas. O brasiliense aprendeu que, para sobreviver ali, deve unir-se aos outros, respeitando e ultrapassando barreiras regionais.
— Uau! Falou bonito! Só ouço as pessoas falarem mal de Brasília, que é onde todos os corruptos se reúnem para roubar o resto dos brasileiros...
Nesse momento, a forasteira acertou o fígado de todos os brasilienses com um poderoso golpe direto.
— Pois é, esse lamentável rótulo pertencia ao Rio, enquanto Capital. Mineiros: pão-duros; baianos: preguiçosos; paulistas: trabalhadores. Rótulos servem apenas para garrafas. Os corruptos estão espalhados por todos os cantos do nosso país. Não se salva nenhum enquanto permanecer a impunidade. A diferença é que de Brasília saem as verbas federais, as somas são maiores e a mídia está mais atenta.
A mulher percebeu que cometeu uma gafe ao falar mal de Brasília a um brasiliense. E procurou mudar de assunto:
— Faz muito tempo que você mora em Brasília?
Aliviado, o candango respondeu:
— Agora você já está falando como uma brasiliense legítima...
— Não entendi...
— Quando duas pessoas se conhecem, a primeira pergunta é: há quanto tempo mora na cidade? E a segunda, invariavelmente, é: de onde você veio? Agora, com o passar do tempo e o surgimento de uma geração de nascidos na capital, a coisa mudou um pouco. De qualquer forma, as perguntas sempre são bem-vindas para o início de uma conversa.
— Há quanto tempo, afinal, você mora na cidade?
— Fui para lá no início da década de 70. No tempo em que a lenda dizia que quem se mudava para Brasília passava pelo estágio dos três dês. Deslumbramento, decepção e desespero. Deslumbramento com as largas avenidas, arquitetura monumental e proximidade com o poder. Decepção ao perceber que morar próximo ao poder não os transforma em nobres. Desespero por não se adaptar à cidade e querer ir embora.
— Era tão ruim assim?
— É uma cidade de gente guerreira. Os perdedores sempre reclamam. — Pigarreou com desdém.  — O tempo incorporou outro dê. O dê da demência.
— Como assim? Não entendi...
— É quando as pessoas se acostumam, se entrosam e passam a amar Brasília.
— Interessante essa lenda...
— Particularmente, adotei ainda os dês da devoção e defesa da cidade que tão bem me acolheu.
Nesse momento, a conversa dos dois foi interrompida pelo forte barulho do retrocesso das turbinas no pouso do avião.
O avião taxiou e estacionou.
Abri a porta do compartimento acima da cabeça, peguei minha sacola e olhei para os que me proporcionaram um voo mais agradável.
Ainda pensei em falar ao conterrâneo que as sílabas de cobogó foram formadas a partir dos nomes de Coimbra, Boekmann e Góis, mas apenas me despedi com um gesto de cabeça.

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