17 março 2015

Palestra de autoajuda


Esta semana recebi três comunicações circulares relembrando a palestra com o prestigiado conferencista de renome nacional, o escritor de cinco best sellers, Dr. Tiago Neves de Melo Costa. Mesmo quem nunca ouviu falar em Melo Costa passou a enaltecê-lo após propagandearem a manada de informações.

O RH ressalta que as falas do Dr. Tiago superlotam auditórios. Que é muito importante se inscrever, apesar da gratuidade, e confirmar a presença, tendo em vista que o auditório comporta apenas trezentos felizardos. Que a palestra Melhorando a autoestima está contida na filosofia de valorização dos funcionários públicos. Que é restrita aos funcionários desta repartição. Vetada a presença de parentes.

Há vários dias, a figura do Dr. Melo Costa nos recebe com um sorriso de boas-vindas na entrada do nosso prédio. O tamanho do sorriso quase ultrapassa as margens do enorme banner multicolorido.

No hall dos elevadores, os cartazes informam que o Dr. Melo Costa já realizou mais de duzentas palestras de sucesso e que já vendeu mais de três milhões de livros. Que os seus livros “É mole ganhar dinheiro”, “Tenha amigos no lugar certo”, “Valorize-se e suba na vida”, “O mundo é dos vivos” e “O que o outro quer ouvir” estarão à venda.

Nos corredores e nas rodas de cafezinho o assunto é único: a vinda do idolatrado professor Melo Costa. Repentinamente, todos conhecem alguma tia ou vizinho que melhorara de vida após ler um dos livros dele. Os colegas citam frases selecionadas nos livros de Melo Costa: “Ajuda o teu semelhante a levantar a carga, mas não a levá-la.”, “A sorte ajuda os audazes.”, “As pessoas que vencem neste mundo são as que procuram as circunstâncias de que precisam e, quando não as encontram, as criam.”. Uma catarse coletiva estava em andamento e a palestra seria só à tarde.

Às 11h30, recebi mais uma circular informando que os funcionários que não conseguiram se inscrever teriam uma nova oportunidade dentro de 40 dias, porque o RH encontrou uma brecha na agenda do disputado conferencista.

À tarde, meia hora depois do combinado, o professor se instala atrás do microfone e, com a desenvoltura de um bispo evangélico, cativa a plateia extasiada.

Em resumo, enaltece o trabalho dos funcionários públicos, afirma que todos são eficientes e eficazes. Eles é que levam o País para frente. Se há alguma deficiência nas repartições públicas é culpa dos malfalados políticos que transferem a má imagem aos trabalhadores da burocracia.

Incomodei-me ao perceber que o discurso estava de acordo com o título do livro mais recente: “O que o outro quer ouvir”. Quando ele pronunciou com orgulho a própria sabedoria: “Todos os dias fazemos muitas coisas que não são importantes. Mas é muito importante que as façamos.” Um alarme soou na minha cabeça. Essa frase é de Mahatma Gandhi.

Peguei a agenda e passei a anotar outras frases de efeito até o término do teatro, quando todos aplaudiram entusiasmados.

Evitei o lanche de confraternização após a conferência. Fui para a minha sala checar as anotações. Não fiquei surpreso ao consultar a Internet e confirmar que Melo Costa, sem constrangimentos, se apossara de pensamentos do Dalai Lama, de Shakespeare, Pitágoras, Sófocles, Paulo Coelho.

Em outra pesquisa, descobri que todas as palestras aconteciam em órgãos públicos: secretarias estaduais, prefeituras, estatais, câmaras municipais e até no Senado Federal. Procurei em listas de mais vendidos e nada encontrei. Todos os livros foram adquiridos pelo governo para distribuição nas escolas e bibliotecas públicas. Sem dúvidas, o Dr. Tiago Neves de Melo Costa aplicava na prática o que ensinava nos títulos dos livros. Tendo amigos no lugar certo é mole ganhar dinheiro. Pena que não tenha escrito nenhum livro sobre honestidade e ética.

Em casa, foi difícil adormecer. Três provérbios giravam velozes na minha insônia: "Quem encobre ladrão é ladrão e meio." “Não existe almoço de graça.”; “Ladrão que não é apanhado, passa por homem honrado."

No dia seguinte, mesmo sem ter a quem apontar os fatos na repartição, juntei a documentação. Lacrei anonimamente um envelope pardo. Dirigi-me ao Ministério Público.

Quando entrei, pediram que me identificasse na portaria. Passei a porta giratória e a figura do Dr. Melo Costa me recebeu com um sorriso de boas-vindas estampado num enorme banner multicolorido.

A porta girou novamente para a minha saída. Entrei em parafuso.

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