28 agosto 2014

Inverno



Como todos os dias, levanto e olho o tempo pela janela. Nestes últimos dias de agosto, não existe possibilidade de chuva no Planalto Central. Ao contrário, em casa colocamos umidificadores para amainar a seca. Na falta, espalhamos bacias e toalhas molhadas. Crianças são as que mais sofrem.
Pertinho, verde grama irrigada. Mais à frente, suave névoa escondendo águas adormecidas do Paranoá. Ao fundo o horizonte vermelho.
Troco o pijama por uma camiseta e meias de lã por meias esportivas. Espreguiço-me e vou caminhar. Na porta de saída do bloco, recebo o impacto do frio no peito. Aceno para o empacotado porteiro e, em vez de esquerda, escolho a direita. Às vezes, temos que sair da rotina e mudar os nossos trajetos e rumos diários. Resolvi trocar calçada decorada com cocô de cachorro de madame por calçada marginal, no mato ralo, em superquadra ainda não construída.
Ando cem metros e ultrapasso a linha de alcance dos aspersores. A grama mudou de cor para sem cor. Mais adiante, formigas cruzam a calçada numa trilha de cavacos marrons desrespeitando o caminho urbanamente civilizado. Prosseguindo, levanto a vista para o céu sereno e desmaiado. Abro os braços com as palmas abertas para captar energia. A força vem tão forte que posso senti-la pousando nas mãos. Emocionado e incrédulo, eu quero ver para crer. Vejo partículas pretas. Apuro o olhar e constato fuligem. Para muito além da névoa seca, o fogo pinta o horizonte de vermelho. Na lonjura, a dor é suave e não dói.
É cedo. O dia acordou preguiçoso, não levantou. Está quase silencioso, ouço cachorros latirem distantes. Devem ser vira-latas, cachorros escovados latem mais tarde.
As árvores nativas são feias. Os galhos são tortos e retorcidos. São errados. Os troncos parrudos têm uma couraça de jacaré para sobreviver nas queimadas. E nesta época do ano, além de feias, estão nuas mostrando esqueletos de campos de concentração. Sem conhecê-las, não damos valor.
A cabeça antenada, recém-despertada, capta, sem chiados e sem interferências, o que me acerca. Passarinho não chia. Passarinho pia. O pio do sabiá está muito próximo.
Olha lá! Olha lá! Ouça, preste atenção! Faça da boca um assobio e repita. Repita assobiando: piedade sinhô... piedade... tem dó de nós... piedade... sinhô. Não é bonito? É apaixonante.
Continuo meu passo na quadra litigiosamente abandonada e vejo uma fumacinha. Ali não há muito mato para ser queimado. Entretanto o instinto de preservação, nesta época de seca, sugere que eu apague o fogo, enquanto estiver baixo. Sigo na direção da fumaça. Nem preciso caminhar muito. Em volta do fogo, vejo quatro boquinhas escancaradas de fome, dor, frio e morte. O pai oferece o desjejum caçado nas caçambas peçonhentas. Adiante da fogueira, há uma tenda de lona preta sob uma árvore de casca dura.
A única luz que há para aqueles miseráveis urbanos é o amarelo solar das flores do ipê.


Piedade sinhô...
   piedade...
        tendo de nós...
                                            piedade...
                                                              sinhô...


21 agosto 2014

Entre nós

Philip Roth

Companhia das Letras

172 páginas

R$ 35,00


O livro veio parar na minha estante porque, sendo escritor, vez por outra procuro ler um pouco de “teoria” literária. A atraente proposta da capa é um escritor entrevistando outros escritores sobre o ofício da escrita.

Já havia lido dois outros livros de Roth: A humilhação e A marca humana. Sei que ele conquistou o Pulitzer Prize e um monte de outros prêmios de prestígio. É o único escritor vivo cuja obra está sendo publicada pela Liberary of America. Este exemplar mostra uma outra face do autor a de entrevistador e crítico literário.

Já na orelha li, para a minha surpresa, que os temas predominantes em vez de serem técnicas literárias ou a literatura propriamente dita, o autor questiona a relação entre a vida e a literatura. Um tema muito mais abrangente do que aquele que eu esperava. Para a minha surpresa sete dos dez autores tem origem judia.

Para mim, o judaísmo é uma questão mal resolvida internamente. Tenho um problema de identificação pessoal. Fui criado numa comunidade alemã – onde o assunto era tratado de forma velada ou sublimado. Falavam mal dos judeus pelas costas como se pertencessem a uma seita ultrassecreta e guardavam um misterioso segredo. Desde sempre questionei essa postura. E entrando na maturidade descobri que o meu sobrenome tinha grandes probabilidades de ter origem judaica. Obviamente jamais resolverei a questão, entretanto quanto mais informações eu tiver melhor saberei lidar com as minhas contradições.

O livro tem como base o cenário em que cada autor cresce e vive e como essas circunstâncias influenciam a obra. É certo que é muito mais fácil e verossímil escrever sobre aquilo que se conhece ou vivencia do que optar a escrever sobre cenários e épocas estranhas. É preciso ser Júlio Verne para embarcar no Nautilus e mergulhar em fantásticas viagens ao fundo do mar a vinte mil léguas submarinas.

Grifei o comentário “A realidade é sempre mais forte do que a imaginação humana, Além disso, a realidade pode se dar ao luxo de ser inacreditável, inexplicável, desproporcional. A obra criada infelizmente, não tem esse direito.” – Seria louco o autor que criasse uma história baseada em Nova Iorque onde dois aviões se chocassem com dois prédios quase simultaneamente. Seria insano o autor que tivesse descrito em detalhes um robô pousando e tirando fotografias “selfie” na superfície de um cometa. Evento previsto para novembro de 2014. Mas o assunto não são torres gêmeas nem robôs cavalgando um asteroide. Trata-se da realidade do Holocausto que transcendeu qualquer imaginação.

Mais adiante um dos entrevistados afirma que “O que me preocupava, e até hoje me perturba, é esse antissemitismo do próprio judeu, um velho mal judaico que em tempos modernos vem assumindo manifestações diversas. Fui criado num lar judaico assimilado em que o alemão era valorizado. O alemão era considerado não apenas uma língua, mas também uma cultura, e a atitude em relação à cultura alemã era quase religiosa. Vivíamos cercados de judeus que falavam iídiche, mas na nossa casa o iídiche era terminantemente proibido. Cresci sentindo que tudo que era judeu era estigmatizado. Desde a minha primeira infância, meu olhar se voltava para a beleza dos não-judeus. Eles eram altos e louros e se comportavam de modo natural. Eram cultos e, quando não se comportavam como pessoas cultas, pelo menos agiam com naturalidade.”

Essa situação foi acentuada, imagino, pelo ministro da propaganda Joseph Goebbels que enaltecia as qualidades germânicas e provocava  bullying oficialmente contra a comunidade judia.

O entrevistado continua “os judeus também me pareciam estranhos. Levei anos para compreender até que ponto meus pais haviam internalizado todo mal que atribuíam aos judeus, e que, através deles, eu também internalizava. Havia uma repulsa implacável dento de cada um de nós.”

Ainda grifei muitas outras respostas dos escritores sempre sob o mesmo foco.

Posso afirmar que Philip Roth foi um ótimo entrevistador. Um perguntador profissional. Conseguiu extrair depoimentos fortíssimos dos seus entrevistados.

O livro, sob a ótica da aquisição – imaginei literatura ou técnicas literárias – foi uma decepção. Entretanto sob o prisma proposto pelo autor – reflexão sobre as origens – foi absolutamente prefeito.  Senti uma vontade enorme de colocar no papel todos os meus dilemas, questionamentos, respostas e dilemas pessoais á respeito do tema proposto por Philip Roth.

14 agosto 2014

Damas turcas
Carlos Castelo
Global Editora
156 páginas
R$ 31,00

Passar a manhã sentado na antessala do ortopedista só não é estressante se você estiver bem acompanhado. Eu estava mal acomodado entre duas senhoras gordas. Segurava a minha agenda, um livro e um enorme envelope contendo as imagens da ressonância magnética dos meus joelhos. A televisão barulhenta parecia mostrar São Paulo no verão, tantos eram os chuviscos. O lugar apinhado de pacientes era comprido e estreito. Às vezes eu precisava recolher os meus pés para não ser pisoteado por alguma muleta. Tudo seria terrível se eu não estivesse acompanhado de Damas turcas. Um livro policial com cenário paulistano.

Fazer um resumo da história é muito fácil: após um assassinato brutal um investigador levanta pistas e suspeitos inusitados para chegar ao criminoso.  Em nenhum lugar do livro diz em que escola o investigador estudou, mas acredito que tenha colado grau na mesma instituição de Ed Mort e de Xangô, de Baker Street.

Todos os personagens são figuras atípicas para não dizer bizarras. O investigador da polícia, um japonês do interior de São Paulo, está sempre acompanhado do seu cachorro Preto, um improvável e dócil poodle branco. Por sentir o cargo ameaçado resolve convidar um amigo para ajudar nas investigações. O amigo, um publicitário aposentado, não entende patavinas de crimes, mas resolve levantar pistas e suspeitos aplicando o mesmo método infalível para desenvolver comerciais.

O publicitário sofre de TOC – transtorno obsessivo compulsivo – e lava as mãos e escova os dentes mais vezes que eu preciso recolher os pés na antessala do doutor.  Ele é casado com uma mulher bipolar que quando deprimida dorme e quando eufórica compra. O ajudante do investigador é um sujeito religioso que costuma saltar de paraquedas para sentir a presença de Deus.

Em vez de um crime, outros claramente relacionados se sucedem.

E, é claro, que as vítimas e os suspeitos também são figuras nada convencionais, entretanto o herói consegue desvendar o crime graças à inteligência, ao bom conhecimento cultural, à dedução e à astúcia.

Tenho vontade de contar algumas passagens engraçadas como aquela em que... mas não conto porque é falta de respeito com o autor. Mas a coceira na língua, que me desculpe o autor, eu não vou resistir. Ri de montão no momento em que o investigador, conduzido na maca por dois policiais, chega à cena do crime e dá voz de prisão.


Eu precisava contar para justificar que apesar das horas passadas na antessala do ortopedista eu ainda encontrava motivos para rir.

08 agosto 2014

Polar


POLAR

Autor: Renato Fino

Editora: Siglaviva

Preço: imagino ser de uns R$ 30,00

Encontrável no Senhoritas Café, na 408N de Brasília

Páginas: 136


Ganhei o livro do Renato Fino. Foi para a prateleira dos que eu quero, gostaria, preciso ler. Lá estão outros 97, contados, necessitados de leitura. Às vezes um ou outro fura a fila. Polar nem pegou muito pó, talvez uns seis meses. Eu saí de um livro parrudo de páginas e conteúdo e queria algo leve e rápido. Leitura suave (me enganei).

Imaginei um romance que eu abandonaria numa lanchonete, porque santo de casa não faz milagres. Embora eu não canse de rezar e prestigiar os santos da casa.

Sentei-me com a intenção de apenas ler o prefácio, a apresentação e as orelhas do livro. Mas só havia um curto parágrafo arrebatador no verso.
“Creio que foi na infância que ergui as minhas descrenças todas. A família, sem meu pai, me parecia uma ave a qual faltasse uma asa e que, por isso, não poderia alçar voo jamais. A escola sempre me pareceu um campo de refugiados para onde as crianças eram encaminhadas por não terem outro caminho a seguir. O governo fazia o papel de um deus tirano, enquanto as religiões se perdiam de Deus”.

Um bom indicativo sobre o estilo e conteúdo. Orelhas limpas de letras. Observei o nome da editora. Chequei o número de páginas. Avaliei que em uma semana terminaria o livro. Sem apresentação nem prefácio. Um lembrete informa que foi a história que o autor diz que não queria ter escrito. Então me pus a ler como quem tira os sapatos para molhar os pés na beira-mar. “Só tenho olhos para o meu abandono. A vida é feita de abandonos e a minha vida não poderia ser diferente”. Poucas páginas depois de molhada a bainha da calça, a água salgada foi aos joelhos. “Soube que meu pai era, então, um jovem forte e bem disposto, com implacável saúde, mas por dentro um morto à procura de outra vida. Fazia parte da tripulação de um navio prestes a mergulhar na guerra já iniciada, quando desertou da morte e saltou para o mar, sem rumo certo, desesperado como um urso polar que não conseguiu alimento às vésperas do inverno”. E, sem perceber fui tragado por uma onda de páginas marinhas: “me pus a observá-la mais profundamente, porque agora eu tentava adivinhar não o que sua carne me dizia, mas o que seus olhos me confessavam”. Encharquei-me de Polar e disposto a me afogar no livro.

Com linguagem acessível, informa que é uma história de abandonos. Logo descobrimos que é mais do que isso, Renato Fino criou metáforas inteligentes para colocar em paralelo a vida de renúncia dos personagens e a vida de abandonos dos ursos polares.

O tema é tão pesado quando pode ser um iceberg, mas há pedras de gelo lúdicas quando traz uma série de informações sobre os nomes de todos os personagens. Magna “é forte e poderosa”. Bárbara “uma estrangeira, uma forasteira uma estranha em minha vida”. Amanda “era amante dos livros”. Em determinado momento da ficção o autor se lança num realismo fantástico e transforma-se em personagem e analisa também seu nome Renato/Renê que significa renascido e é o que tem vivido desde que veio ao mundo, um eterno renascimento.

Particularmente leio livros como um escritor e não apenas como um leitor. Por isso abro a minha lupa à procura de contradições e pontos criticáveis. Renato Fino passou com nota altíssima no meu crivo, só não ficou com a nota máxima por um detalhe que considero estímulo para que seu próximo livro seja ainda melhor. Entendo que mesmo a ficção deve ser verossímil nos detalhes. Em determinado momento é citado um posto de estudo científico de ursos polares em Murmansk na região polar da Rússia. Verifiquei que a “vila” tem mais de 300 mil habitantes e que lá só vivem ursos pardos.

      Terminei o livro em três dias confirmando que a história é de abandono, mas o livro não pode ser deixado de lado sem leitura e aplauso.
 
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