25 janeiro 2013

O fio das missangas

Mia Couto


38 contos para 29 cônicas e contos

Companhia das Letras

152 páginas

5 dias de prazer



Hoje é domingo. Manhã de nuvens espraiando gotículas de preguiça. A mulher me chama para um alegre (e barulhento) encontro familiar. Eu já havia lavado a xícara de café e levantava a ponta do lençol para reaconchegar meus pés frios.

– Vamos embora?

– Obrigado, querida. Hoje eu renuncio. Quero sozinhar.

– Como assim? Que diabos é isso? Agora deu de inventar palavras?

– A palavra sempre existiu. O mundo está cheio de palavras virgens, desejosas de estreia. Só depois de caírem na boca do povo é que são dicionarizadas. – bocejei – Sozinhar estava no ar, perfumada e louca para estrear no mundo. Fui lá e a tomei para mim. Agora, pós inauguração, divido com quem quiser.

– É melhor mesmo ficar em casa. Você deve estar delirando com esse livro.



Eu sempre sou influenciado pelos livros que leio. Este foi o segundo do Mia Couto que velou algumas noites do meu sono, deitado no criado-mudo sob meus óculos.

Esse multipremiado moçambicano é um poeta que escreve em prosa. Da mesma forma que inventa palavras, cria histórias geniais. Mia Couto transforma improbalidades em contos e crônicas verdadeiramente maravilhosas. O banzo e a tristeza são expressos com melancoliosa singularidade.

Costumo dobrar as orelhas das primeiras páginas dos textos mais apreciados. Marquei quase todos. Destaco As três irmãs, Os olhos dos mortos e a Infância fiadeira além daquele que dá título ao livro.

É sensato não copiar um texto inteiro, entretanto alguns parágrafos merecem reverências:

À página 27 está: “No dia seguinte, a mãe cumpria a vontade de domingo, comparecida na igreja, seu magro joelho cumprimentando a terra.”

À página 29 a protagonista, no falecimento da mãe, pós-parto anotou: “minha mãe nunca soletrou meu nome. Ela se calou no meu primeiro choro, tragada pelo silêncio.”

À página 51, um neologismo delicioso: “Eu era nova, dezanovinha.”

No mesmo conto, duas páginas adiante: “Porque eu não sou por mim. Existo reflectida, ardível em paixão. Como a lua: o que brilho é por luz de outro.”

À página 99 lança um pensamento: “Uns aprendem a andar. Outros aprendem a cair. Conforme o chão de um é feito para o futuro e o de outro é rabiscado para sobrevivência.”

Na crônica Os machos lacrimosos, página 107 temos: “ Eles se encontravam por causa de alegrias. No bar de Matakuane, os homens anedotavam, fabricando risadas.”

Um tequinho adiante, na mesma história: “Mas o choroso todaviou-se. E foi crescendo de choraminguado para carpideiro. Entre soluços, soltava os fios da fúnebre narrativa. Já nem se percebia palavra. Tal maneira as falas vinham envoltas em babas. Na sala surgiu um lenço e rodou de mão em mão, coletando excessos. Tarde de mais, as chamas da tristeza já haviam devorado o coração de Kapa-Kapa.”

Terminei o livro a tempo de me reunir com a família e sugerir a leitura.

Minha mulher respondeu de pronto:

– Vou ler quando estiver com euzinha.

23 janeiro 2013

Atitude

Depois do aroma do alecrim que enfeitava e temperava o faisão, se acomodaram nas poltronas da sala esperando o café e os licores. As fragrâncias de Chanel, Jean Patou voltaram a tomar conta do ambiente.

Compararam o atendimento nos hotéis de Atenas, Dubai e Saint-Tropez. Reproduziram diálogos que tiveram com Obama, Bento XVI e Saramago. Este último introduziu Proust, Brecht e Dostoiévski na conversa.

Depois de receber o aval de todos, Felipe Alberto sentou-se próximo à janela, acendeu um charuto e, provocativo, perguntou a Joanalva se algum livro teria mudado sua vida.

Joanalva estava retraída, silenciosa, enojada com cheiro de soberba que infestava o ambiente.

– Sim, Guerra e Paz do Tolstói.

– Mas é um livro enorme. Você leu tudo?

– Subi em cima. Fiquei cinco centímetros mais alta que você.

20 janeiro 2013

Cartas de um sedutor

Hilda Hilst    

31 paus    

Editora Globo    

200 páginas    

Agora que todas as mulheres vão para a cama com 50 tons de cinza resolvi que eu também deveria ler. Por outro lado os críticos a amarraram escritora num pau de arara para dar porrada. E, dá-lhe porrada.
Talvez, quem sabe devesse ler aquela outra gordinha que escreve no mesmo estilo erótico, porém melhor e que no nome já diz a que veio : Dei. Sylvia Day.
Não. Definitivamente não. Não sou mulher. Esses livros foram escritos por mulheres para mulheres. É o que dizem.
Aí, na livraria encontrei outra mulher: Hilda Hilst. E os textos não eram poesia. Eram cartas. Cartas de um tarado.
Há trezentos anos uma amiga me recomenda com entusiasmo a leitura da Hilda Hilst.
Eu sabia que a autora era da linha pornô, mas julguei que fosse somente poetisa.
Folhei e me atrevi a comprar.
A autora se coloca no papel de um homem endinheirado que escreve para a sua irmã que está num convento. Só pensa em sexo. Coisa herdada junto com a grana. Em sucessivas cartas, cada vez mais picantes e reveladoras relembra as aventuras com a irmã. E outras relações nada convencionais.
“Não ignoras o quanto fui competente fazendo o impossível para que tu pensasses (quando estavas comigo) que na realidade fodias com teu pai. (Sorte que, até hoje ou até onde sei, não nos coube.) E reconheço que te esforçaste para que eu pensasse em mamãe na hora de chupar os formosos seios.”
“Gosto de corpos duros, esguios, de nádegas iguais àqueles gomos ainda verdes, grudados tenazmente à sua envoltura.”
Não sou nenhum santinho, mas juro que aprendi um monte de palavras e expressões que nem o Nelson Rodrigues empregaria.
Há pelo menos dois contos – ou duas cartas excelentes, costumo dobrar as orelhas para marcar.
Hilda Hilst tem uma vasta bibliografia com 20 livros de poesia, 12 de ficção e um de dramaturgia além da participação em 7 coletâneas. Foi traduzida para o francês, italiano espanhol, inglês e alemão.
Ela escreve, desculpe o linguajar, bem para caralho, mas não é a minha praia. Eu não pretendo ler outro livro da Hilda. Entretanto achei fundamental ter conhecido o estilo.

15 janeiro 2013

Diálogos impossíveis



Luis Fernando Verissimo

Gastei 33 reais

Editora Objetiva

176 páginas



Comprei o livro após degustar uma crônica – Albert Speer fala com as flores – na livraria. Genial! No dia em que Verissimo escreveu o texto estava inspiradíssimo.

Livro comprado.

Reparei a capa? Voltei e olhei as duas latas amarradas pelos fundos com um longo barbante formando o infantil brinquedo do telefone com fio. O barbante sempre precisa estar esticado, não é o que acontece com o desenho da capa, impossibilitando diálogos.

Ler Luis Fernando Verissimo sempre é muito bom. Sou fã dele há muito tempo. Tanto insisti que tenho o privilégio de uma orelha escrita por ele no meu livro Cara de crachá.

Ainda me lembro de meu Outras do analista de Bagé de capa amarela que eu li várias e várias vezes na década de 70. Apesar de maravilhoso, dentro do livro havia muitas histórias, embora boas, que não eram do Analista. Aquilo me incomodava. Eu queria do protagonista, não outras. Embora o título dissesse outras.

Da mesma forma que em Ed Mort, e Analista de Bagé, em Diálogos impossíveis acontece a mesma coisa. Há histórias que não “fecham” com o título do livro. Há vários diálogos. Muitos maravilhosos, mas são outros. Outros diálogos. Outros diálogos que nada tem de impossíveis. Talvez imprevistos, bem humorados, irônicos ou inesperados. Ótimos. Mas outros.

Porque eu estou pegando no pé do Veríssimo, meu ídolo e mestre? Talvez seja a idade. Não a dele. A minha idade. Devo estar ranzinza.

O primeiro conto chama-se A diferença. Não foi a toa que os editores o escolheram para a abertura. A genialidade do autor está presente com o humor, com a criatividade, com a leveza, com a escolha das palavras, com a rica percepção que tem do que nos cerca e com o final inesperado. Dez!

Os editores também capricharam na escolha do segundo e terceiro conto. Valeram os muitos reais da aquisição. No quarto conto não há diálogos. A história é muito engraçada, impossível, mas foge do título.

Neste livro eu percebi um Verissimo doce capaz de suplantar qualquer poeta quando Don Juan procura seduzir a Dona Morte:

“– E com você não precisei usar nenhum dos meus truques. Nem meu olhar de desatar espartilhos, nem os versos que orvalham o portal do amor antes mesmo do primeiro toque...”

Será que é preciso dizer mais alguma coisa?

Ok. Direi.

– Vá. Compre e leia logo. É imperdível.

03 janeiro 2013

Ressaca do réveillon



O ano recém começara e nos encontramos num barzinho para reabastecer o tanque que já estava na reserva.

Nós éramos em cinco embora Lúcio afirmasse sermos nove e Toninha apostar no número sete.

– Então vamos contar de novo. – sugeri. – Neco, Paulinha, Lúcio, eu, Zé e Toninha.

Lúcio bateu a mão na mesa. – Eu num falei! Somos sete!

– Peraí! Pediu a Toninha. – Exijo recontagem. A gente começa com a Paulinha para não contar duas vezes.

O Lúcio apontou para a Paulinha e depois foi seguindo o dedo para o lado e todos, em coro, contaram.

– Um , dois, três , quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze...

Neco interrompeu a contagem.

– Para. Para. Para. –Tu apontou para o pessoal da outra mesa.

– Tão sentados na outra mesa. Mas quem não conhece a Lili, o Paulão e a Fê e os outros quatro que estão com eles?

Interrompi com autoridade: – Aquela não é a Fê. A Fê tem uma boquinha carnuda deliciosa. Essa á a irmã dela. Ainda não sei se a boca carnuda é deliciosa. E tem mais, além da Lili, do Paulão e da irmã da Fê são só mais dois e não mais quatro.

– Bora contá de novo – sugeriu Neco.

Vamos não, – cortou Toninha. – hoje é dia de prometer, comprometer, de se engajar nas promessas. Assumir responsabilidades. Esquecer medos. Anunciar um projeto para melhorar o mundo.

Lúcio ergueu o copo num brinde às palavras da Toninha e perguntou qual era a sua resolução salvadora para o ano nascente.

– Vou pintar meu cabelo. Serei loira. Serei a loira mais gostosa do planeta.

Lúcio sem desmentir a gostosura da Toninha: – Mas o seu cabelo já é loiro.

– É que eu prometo retocar de 15 em 15 dias. E tu Lúcio, o que vai ser?

– Caraca, nem pensei. Acho que eu tenho que terminar a faculdade.

O garçom, de passagem, pensou que deveria cobrar os dez por cento antes de o pessoal começar a beber.

A Lili, sem ser perguntada, ajeitou os peitões no decote e disse que a sua resolução era não mais usar calcinha quando estivesse de vestido.

Paulão, lá da outra mesa, levantou-se com olhar vermelho e sedento:

– Eu prometo solenemente, para quem quiser registrar em cartório, que neste ano, semana a semana comprarei uma saia para a nossa querida Lili.

A irmã da Fê beliscou o Paulão na barriga.

Paulinha cutucou o Neco que já estava com o tanque cheio.

– Eu prometo que vou começar a procurá emprego.

– Essa é velha. Não pode. Mande outra.

– Tá bem. Prometo bebê menos.

O garçom palpitou que o Neco poderia ao menos prometê pagar suas contas.

Olhei em volta. Todos os cinco, ou sete ou nove já haviam externado decisões para o novo ano. Era a minha vez.

Eu já estava tomando água há duas horas. Disse que tomara a resolução firme e forte, encantava a vida ou desencantava a morte. Iria acabar com meus cabelos brancos, extinguir a barriga, eliminar as rugas da face. Minha decisão é irreversível: vou rejuvenescer.

 
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