28 abril 2012

Suprema decisão


Retrato em preto-e-branco

 
A definição de raça agora é sacramentada por um tribunal de pureza racial que entrevista os candidatos a vestibular e define os que podem ou não ser enquadrados nas cotas dos negros. Na escola aprendi que raça era uma coisa e cor era outra.
O que me interessa é que devem ser criadas cotas também para os portadores da letra K no nome. Desde a alfabetização sofri descriminação. Os portadores das letras W ou Y que juntem sua turma para formalizar seu pleito. Vou cuidar apenas daquilo que me diz respeito. Somos poucos, pleiteamos cota de apenas 0,5 % das vagas universitárias.
Negros e mulatos: 40%; deficientes físicos: 20%; egressos de escolas públicas: 35%; pobres: 20%; indígenas: 15%; asiáticos: 4,5%; judeus: 3%; desafinados: 5%; macrobióticos: 2%; órfãos: 1%; analfabetos: 18,37%.
O nosso caso não necessitará de nenhuma comissão especial para confirmação. Dispensaremos atestado de pobreza e exame de DNA. A identidade será o suficiente para provar nosso enquadramento na cota. Particularmente tenho K por parte de pai e de mãe.
Feliz mesmo vai ser um amigo meu Zibgniev Chlowinsky, é pobre, estudou em escola pública do nordeste, não aprendeu a escrever, é preto de pai e indígena de vizinho, sem amídalas, careca, míope e na casa dele não tem televisão colorida.
Zib com certeza vai entrar na faculdade, pois somando todas as cotas estará com 127, 38%, o problema é que irá direto para o laboratório de antropologia.


27 abril 2012

Minha mãe se matou sem dizer adeus


MINHA MÃE SE MATOU

SEM DIZER ADEUS

EVANDRO AFFONSO FERREIRA

Editora Record

128 páginas

Preço: uns R$ 28,00

Quando peguei o livro na mão, o título de tarja preta sobre um papel de embrulho de verde veneno, fiquei chocado. Parecia um remédio que provocaria efeitos colaterais indesejáveis.
Aberto o vidro, digo o livro, saboreei algumas cápsulas coloridas.
Página 11 – manhã que se estatuou.
Página 12 – Veio menina por descuido da natureza. Viveu menino tempo todo.
Página 15 – A sonoridade de: sei-sinto-pressinto.
Página 24 – Ah minha filha, perdão se lhe dei aquilo de que nem eu mesmo gosto: a vida.
Página 25 – não se mate ainda, meu velho, não se mate; pense na possibilidade decepcionante do café lá do outro mundo não ser assim tão encorpado.
Página 30 – Quadrilha drummondiana às avessas– pai batia na mãe que ignorava o filho que odiava o pai.Página 37 – Netos chegam espargindo primavera nos avós.

Página 51 – O desfecho da vida é cheio de indelicadezas.

Página 68 – as folhas caem nas outras estações além do outono.

Página 71 – Mãe jovem na mesa ao lado segura bebê lembrando-me do avô que nunca serei. Não retribuo o sorriso: não quero intimidades com o futuro.

Página 112 – Essa moça que carrega o sol a tiracolo.

Página 115 – Envelhecer é surpreender-se a cada manhã com mais um descuido da morte.

        Logo descobri que as cápsulas rareavam porque as via pretas como o rótulo que veste luto. A morte e o suicídio estão presentes com pessimismo latente. A cada página sentimos a melancolia funesta e desesperançosa. As frases sombrias derrubaram meu astral.

        As páginas avançaram, porém a história não se desenvolvia. A cada capítulo o autor se repetia e se repetia. Repetia tanto que ousei escrever um capítulo resumo:

É domingo. Chove. Passo o dia na doceria. Amo minha mãe bêbada e bonita. Não entendi porque se foi sem despedir. Odeio meu pai. Converso telepático com os fregueses das mesas. Sei-sinto-pressinto amigos judeus e a senhora decrépita. Estou triste e melancólico na mesa-mirante e que não sei como finalizar o livro já batizado Minha mãe se matou sem dizer adeus. Vou cortar a teia da própria vida.

Quando terminei o livro, abri a gaveta do criado-mudo, peguei a cartela de comprimidos. Tomei dois Prozac de 20 mg.
 
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