27 outubro 2010

Presidiários de paladar apurado

“Uma pesquisa feita por cientistas da Universidade de Manchester pode explicar uma questão que existe desde que o homem começou a voar: “Por que a comida servida nos aviões é tão ruim?”. Segundo o estudo, publicado na revista científica Food Quality and Preference, o barulho do ambiente pode interferir na percepção do sabor e textura dos alimentos.” - Você sabia... - CB 25/10/2010


Todos os dias, invariavelmente, a fila era enorme no almoço ou jantar. Para enfrentar a meia hora de espera discutiam futebol, ofendiam o diretor e praguejavam sobre a comida. Mas estavam lá no dia seguinte e no outro e no outro, mês a mês, anos a fio. Quando chegavam ao balcão estendiam um bandejão metálico onde lhes despejavam duas colheradas de arroz, outra de purê de batatas, duas conchas de feijão, alguma verdura molenga e um objeto que chamavam de carne. Às vezes uma laranja ou uma banana.
As enormes fileiras de mesas pregadas ao chão eram disputadas por dois mil homens que arrastavam cadeiras para sentar. As paredes refletiam o som dos cinco aparelhos de televisão espalhados nos cantos do refeitório. A escolha do local não era voluntária. Não dispunham de outro endereço ou opção. Os homens eram prisioneiros da comida da casa de detenção.
Continuamente insatisfeitos estavam sempre reclamando. Diziam que o leite estava azedo. Reclamavam do arroz empapado, lamentavam as verduras podres. Afirmavam que nem a pimenta disfarçava o péssimo gosto da comida. Resmungavam a ausência de frutas. Queixavam-se que a carne era pouca porque já não havia gatos na região. Nem ratos. Eram perpétuos insatisfeitos com o paladar da intragável comida.
Ao contrário da eterna rotina de reclamações, protestaram escandalosamente numa quarta-feira. A multidão estava irada. Homens socavam as mesas, batiam canecas e gritavam palavras de ordem por comida melhor. O barulho no refeitório estava ensurdecedor. Era impossível ouvir o noticiário na televisão que sempre estava no volume máximo. Os prisioneiros pareciam animais irracionais rejeitando a velha ração de marca suspeita.
Só jatos de água fria acalmaram a balbúrdia e no mesmo dia o diretor convocou o responsável pela cozinha exigindo um relatório detalhado sobre a situação.
Para se isentar de qualquer culpa ou até eventuais suspeitas da qualidade dos banquetes oferecidos aos cidadãos enclausurados, o chefe da cozinha, com números e gráficos, relatou e comprovou que a comida era balanceada e oferecia todos os nutrientes, calorias e vitaminas recomendadas pelas rigorosas normas internacionais. O autodenominado mestre-cuca, que advogava melhor que um causídico diplomado e juramentado, para se isentar das acusações anexou ao relatório um estudo científico que afirmava que o barulho do ambiente interferia na percepção do sabor e textura dos alimentos. Desta forma desembaraçou-se de incriminações e transferiu a culpa à deficiência no sistema carcerário. Finalizou o documento sugerindo a aquisição de protetores auriculares aos detentos na hora das refeições.


Este conto também não foi publicado no Estadão, Globo, Folha, Zero Hora, Estado de Minas ou Correio Braziliense. Nem em lugar algum. Pudera! Só agora estou colocando à disposição.
O texto da próxima semana poderá estar. Basta me contratar para escrever um conto semanal como este que é resultante de notícia publicada nesta semana no Correio Braziliense.
Os textos limitados entre 2958 e 2997 caracteres estarão no blog todas as quartas-feiras antes da 18h.

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