03 março 2010

Perguntas de soslaio

Ajeito-me na cadeira. Puxo o teclado para mais perto. O monitor exibe uma tela com o Maracanã lotado de bandeiras tricolores. Sobre o estádio estão vários ícones, não do futebol, mas dos meus programas de maior uso. O meu predileto, a minha ferramenta mais freqüente, fica no canto inferior direito com o singelo nome de Paz. Ninguém da face da terra vai imaginar que sob aquele ícone travam-se as mais ferrenhas batalhas entre o computador e eu. Basta clicar e a máquina me desafia para mais uma disputa de pesos desproporcionais. Sete montinhos de cartas se perfilam para outra contenda de paciência.
Era exatamente isso, deitando um cinco de paus sobre um seis de copas, que eu estava fazendo, no meio da tarde, quando atendo ao telefone.
— Repartição, boa tarde.
— É você von Silva?
— À sua disposição...
— Você se lembra de mim?
Ser interrompido numa empolgante partida de paciência é ruim. Mais grave é quando uma pergunta constrangedora interrompe nosso raciocínio exigindo concentração e reflexos rápidos alternando instantaneamente para jogo de adivinhação.
— Você me pegou de surpresa! Você cortou o cabelo não foi? Mas lembro muito bem da sua voz. — Respondi oferecendo uma oportunidade à interlocutora de revelar seu nome.
Ao invés de desvendar o mistério, ela opta por oferecer uma pista.
— Não está me reconhecendo, von Silva? Nós nos falamos há menos de um mês.
Essa mulher quer complicar a minha vida! Preciso fazer com que ela fale um pouco mais. — É que o meu aparelho está chiando muito, e não consigo ver você direito! — Brinco procurando ganhar tempo.
— Puxa, von Silva, imaginei que eu fosse uma pessoa mais importante para você.
Nesse momento me senti acuado. A fala foi muito curta, não percebi qualquer sotaque. Chamou-me de você, nem doutor nem senhor, tampouco pelo prenome. A voz doce e sensual fala com intimidade. Como posso ser grosseiro com alguém que fala com voz de lábios vermelhos carnudos? E se for uma amiga ou sobrinha da madame? Deus me livre! Que fria!
— Quem sabe você diz só o primeiro nome?
— Você foi tão encantador... me chamou de mocinha.
Era só o que me faltava, encantei alguém por chamá-la mocinha. Chamo todas as mulheres de mocinha ou menina, é só um jeito de falar, moças ou velhas cambaleantes, todas gostam e não preciso guardar nomes. Desconfio que a mocinha seja um trubufu solitário sem desconfiômetro. — Agora que já sei com quem estou falando ficou mais fácil, mocinha. Em que posso ajudá-la?
— Você está muito ocupado?
Não, não pode ser! Isso é uma brincadeira de mau gosto! Ninguém merece. Nem para a minha consciência eu admitiria estar na quarta partida. Tenho que tomar cuidado com as minhas palavras e preciso descobrir quem é essa poderosa jararaca cabeluda. Será que ela precisa de alguma consultoria? Será que quer apenas que eu a chame de mocinha novamente? Será que precisa que eu descubra o destino de algum processo na repartição? Será que quer testar meus nervos? E se for alguém da auditoria? — Estou analisando essa pilha de processos que está na minha frente. Tenho muito trabalho. — E se a jararaca for apenas uma cobrinha risonha? — Mas, posso fazer uma pausa.
— Será que pode me ajudar?
Isso é um novo tipo de tortura! Um interrogatório onde o algoz coloca a vítima em um pau de arara, venda os olhos e queima o prisioneiro com pontas de cigarro primeiro nos braços e pernas indo até a genitália. Não posso me entregar! Não vou delatar meus companheiros de repartição. Somos inocentes! Estou nas mãos da inquiridora. Serei simpático antes que me corte a língua: — Posso ajudar sim, contanto que não seja nada de ilegal.
— Hahahahaha (foi a risada mais satânica que já ouvi). Bem que o Zé diz que você sempre está bem humorado.
Ufa! Afinal uma abertura. — De qual Zé você está falando?
— Do meu marido.
Que maravilha, passei da posição de interrogado para interrogador. Na primeira oportunidade me vingarei dessa víbora peçonhenta. Farei um cinto de pele de cascavel e o meu telefone em vez de tocar vai chacoalhar guizos. — Aposto que só você o chama de Zé. — Arrisquei.
— É verdade. Aí na repartição todos só o chamam pelo sobrenome ou simplesmente de chefinho.
Filhada mãe! Então é a senhora, dona Altamira? Espero que ela não tenha percebido a minha dúvida. Baixei a guarda. E fui quase subserviente. — Afinal, no que posso ajudá-la?
— Eu quero saber onde você comprou para a madame aquele vestido com flores azuis e também que você vai fazer no sábado?
De novo não! Socorro. Vai começar outra seção de tortura!
— Desculpe mocinha, a secretária me avisou que devo descer imediatamente para falar com o diretor. — E, desliguei.

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