31 outubro 2007

Osteoporose infantil

Quando vi que a menininha estava de capacete, joelheiras e cotoveleiras caminhando pela calçada comentei com a minha namorada que a garotinha era uma coitada, que eu estava com muita pena daquela pálida figurinha frágil. A doença dela deveria ser muito grave, provavelmente uma espécie osteoporose infantil em estado muito adiantado de forma que os pais da moleca, para protegê-la obrigavam-na a usar aquela indumentária para não perdê-la para sempre, que ela deveria sofrer muito com aquela roupa quente, e que aquela débil figura deveria ser atormentada impiedosamente com as brincadeiras maldosas dos coleguinhas da escola. Quase derramo uma lágrima salgada de compaixão quando minha companheira interveio.
– Você não viu que ela deixou a bicicleta ali naquela casa?

22 outubro 2007

Dormiu homem, acordou mulher

Almeida muito suado afastou o lençol e se ajeitou melhor no travesseiro. A cabeça estava doendo e havia alguma coisa incomodando a orelha. Sem abrir os olhos tentou tirar o que parecia um botão. O quarto estava escuro e silencioso. Almeida sempre dormiu nu e estranhou que, apesar de ter afastado o lençol, sentia-se vestido. E pior, a roupa apertava-lhe as partes.
A dor de cabeça era mais forte que a curiosidade. Assim, voltou a dormir.
Passadas três horas voltou a se revirar. Sentia-se desconfortável com aquela coisa na orelha e a roupa apertada. Abriu os olhos, enrugando a testa com medo da luz. Não havia luz. Virou-se então para a mesinha de cabeceira a fim de ver as horas. O despertador estava apagado. Almeida, com a cabeça pesada, imaginou que devia ter deixado o livro na frente daqueles números brilhantes na hora de apagar a luz.
Optou por acender o abajur e esticou o braço lerdo. Não encontrou nada. Tateou novamente. Não encontrou o interruptor nem o criado-mudo. Com a outra mão tateou para o lado da esposa e antes de perceber que estava só, estranhou um bolo de cabelos bem no meio da cama. – Que bicho seria aquele? – pensou.
Uma nesga de luz entrava por um cantinho da cortina. Almeida sentou-se e percebeu que aquele não era o seu quarto. O lugar lhe era estranho. Levou as mãos à nuca, como se o gesto pudesse amainar as dores. O paladar acusava gosto de alho, coentro e óleo diesel. Tudo ao mesmo tempo.
Mansamente colocou os pés para fora da cama posicionando-se em direção à janela. Um passo e meio foram suficientes para alcançá-la. Com medo de explodir a própria cabeça, tanta era a dor, empurrou vagarosamente a cortina para o lado. Encontrou vidros sujos de uma janela porca de um quarto imundo.
Virou-se lentamente para examinar o ambiente. Uma cama de casal com lençóis rasgados, uma cadeira de palhinha com um buraco no lugar do assento, uma mesinha com um copo e uma garrafa d’água, um espelho pequeno pendurado na parede próximo da porta e sapatos de salto alto jogados próximos à cadeira. Não havia banheiro. Usava roupas de mulher desqualificada.
Almeida sentiu nojo do lugar e de si. Arrancou o vestido do próprio corpo. Não reconheceu como sua a cueca que usava, olhou melhor e percebeu que estava de calcinha. Procurou suas roupas pelo quarto e não viu nenhuma. Estava sem relógio. Estava sem o seu Rolex de ouro. Olhou novamente para os lençóis e reconheceu no bolo de cabelos uma peruca loira. Constrangido, não sabia se tirava a calcinha ou se ficava com ela. Não sabia o que era pior: ficar de pé no carpete encardido ou sentar na cama do prostíbulo.
Apalpou-se e confirmou um par de brincos. Foi até o espelho para tirar os enfeites e levou mais um susto com a maquiagem borrada.
Almeida estava muito desconfortável. Não estava entendendo nada.
– Por que estou com essa calcinha ridícula? Onde estão minhas roupas? O que estou fazendo aqui? Onde estive ontem à noite? Por que estou me sentindo tão mal? O que houve? O que está havendo? Assalto? Extorsão? Seqüestro?
As pernas tremeram. Sentou-se na cama para reavivar a memória e somou mais um desconforto. Sentiu dores.
Teve ganas de sair da própria pele.
Levantou-se e arrancou a calcinha ensangüentada. Teve ânsias de vômito. Sentiu-se invadido, ultrajado, humilhado. Foi até a mesinha, afastou com asco o copo de geléia e abriu a garrafa de água mineral. Esvaziou no gargalo a água quente e gasosa que não melhorou em nada seu estado desolador.
Almeida sequer tentou abrir a porta. Suas opções eram terríveis: sair nu ou com roupa de mulher.
Voltou a se acomodar na cama. Deitou-se de lado, encolhido em posição fetal.
A cabeça girava, o ânus doía, estava psicologicamente arrasado e agora começou uma dor de barriga.
Procurou lembrar-se da véspera. Não se recordava de nada diferente. Levou as crianças para a escola e, como sempre, foi o primeiro a chegar ao escritório. Almoçou com um cliente e à tarde reuniu-se com os sócios. Rotineiramente, saiu do trabalho às oito horas e pegou o carro no estacionamento. Sentiu um vazio, um branco na memória. Pegou o carro ou não pegou o carro? Para onde foi? Ainda se recordou que precisava abastecer a caminho de casa. Fechou os olhos e começou a refazer seus os passos. Mentalmente desceu o elevador, cumprimentou o zelador, atravessou o pequeno jardim, caminhou à direita na calçada. Lembrou-se que a loja de calçados estava fechada, com a vitrine iluminada. Quando passou em frente da farmácia pensou em pesar-se, não entrou, deixaria para iniciar o regime no outro dia. Atravessou a rua na faixa de pedestres. Quando se aproximou do carro foi abordado por um estranho. – Aquele camarada deve ter me sedado. – Difícil saber o que dói mais. A cabeça, o sentador, a barriga ou a humilhação.
A nossa vítima apurou os ouvidos. Parecia ouvir um telefone. Era o toque abafado de um celular. Encontrou o aparelho dentro do sapato, sob a cadeira.
Antes de atender viu uma coleção de zeros indicando ligação não identificada. Almeida estava apavorado, construiu uma sólida, ética e vencedora carreira judicial, sempre foi pai dedicado e marido fiel. A sociedade reverenciava seu trabalho e desprendimento como fundador de um orfanato de crianças carentes. Era professor honoris causa em duas universidades. Não estava acostumado a tratar com gente de baixo nível.
– Alô. – atendeu seco e desconfiado.
– Eu vi que a Cinderela abriu a cortina. Já encontrou suas fotos embaixo da cama? Com qual deles teve mais prazer?
Num pulo, Almeida saltou para o lado da cama e encontrou quatro fotos impressas em papel de computador, bem diferentes daquelas das colunas sociais.
– O que você quer de mim, seu filho-da-mãe? – Disse com muita raiva, porém medindo as palavras, pois estava em clara desvantagem.
– Eu não quero nada de ratos. Enviei e-mails com as fotos para todos os seus amigos, eles vão adorar ver você sendo amado naquelas posições grotescas.
Almeida colérico, totalmente tomado de ódio, gritou:
– Por que eu?
Do outro lado a voz respondeu segura e acusativa:
– Você deveria ter perguntado isso para a pequena Gabriela. Aquela menina doce, do terceiro andar, que você leva para a escola junto com seu filho.
A vítima transformou-se em réu, o tom agressivo amansou e a ira virou pavor.
– E daí?
– Daí que advogados iguais a você sempre conseguem liminares, habeas corpus e mil artifícios para fugir das penas.
– Aonde você quer chegar?
– Não quero chegar a lugar nenhum. – E cheio de ironia, completou: – Apenas retribuí todo amor que você deu à indefesa Gabriela.
– Quem é você?
– Sou tio dela, delegado de polícia e exterminador de ratos. Você gostou da água gasosa?Antes de cair no chão o condenado contorceu-se de dor e arrependimento. Depois sentiu mais uma forte pontada no estômago causada por raticida.
 
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