28 maio 2007

Fora de medida

Chego em casa depois de mais um estafante dia de trabalho e a confusão está instalada: madame chorando na frente do fogão.
Sempre a tratei muito bem. Quase não lhe falta nada. Como sempre, acordei-a com um delicado beijo na testa, preparei o café e ainda coloquei colherinha e meia de açúcar. Beijei-a na saída. Melhor dizendo, beijei-a na boca, ao sair. Senti saudades e retornei direto para casa ao fim do dia.
Vejo que há uma série de xícaras diferentes espalhadas pela mesa da cozinha, um pacote de massa para bolo, um termômetro, a calculadora, alguns ovos de codorna, várias colheres de tamanhos diferentes, a jarra de leite, o pote de margarina derretida e o velho despertador barulhento.
Tomo-a em meus braços e pergunto o que foi que aconteceu.
Soluçando, responde que desejava preparar uma festinha só para nós dois, mas a receita do pacote estava por demais complicada:

BOLO DE CHOCOLATE
Ingredientes:
1 pacote de massa de bolo de chocolate
¾ de xícara de leite
3 ovos
2 colheres de margarina à temperatura ambiente

Misture tudo até formar massa homogênea; Unte e enfarinhe uma forma redonda com furo no meio; preaqueça o forno em temperatura média por quinze minutos; Não abra o forno antes de 30 minutos; após esfriar por 15 minutos, desenforme e sirva.
– Veja só quantas xícaras diferentes nós temos aqui: a do seu café, aquela outra de plástico, a do jogo de porcelana que ganhamos no nosso casamento... e todas têm tamanhos diferentes, – Ovos podem ser de codorna, de pata, de galinha, caipira, brancos, médios e... Enxugando as lágrimas. Qual dessas colheres? Uso a do diário ou devo usar a do faqueiro de prata?
Segurei-a pela mão, arrastando-a até a sala. Acomodei-a no sofá. E fui buscar dois cálices. Enquanto servia um porto, protestei:
– A culpa é da impunidade! Neste país as pessoas fazem o que querem e ninguém é responsabilizado por nada. Passam nos sinais vermelhos, assaltam, não fecham as pastas de dentes... Todos esses calhordas deveriam ser exemplarmente punidos! Para que serve o Instituto Nacional de Pesos e Medidas? Vou entrar com medida cautelar, seja lá o que isso queira dizer!
Irado, continuo meu protesto:
– Cientistas do mundo inteiro se reúnem, estudam e definem que quilograma é a massa do protótipo internacional constituído por um cilindro de platina e 10% de irídio depositado no Bureau Internacional de Pesos e Medidas, e ainda que o metro é igual ao comprimento do trajeto percorrido pela luz no vácuo durante um intervalo de tempo de 1/299 792 458 de segundo e... que diabos!
Virei o cálice de vinho para lubrificar a garganta e continuei:
– Estes fazedores de receitas culinárias estão nos cozinhando! Como vamos definir o que é uma pitada? Quantas gramas? Uma colher rasa de farinha? Então, além das colheres de chá, sopa e sobremesa, ainda podem ser cheias, bem cheias e rasas? Aí, ainda tem a história de meia xícara, três quartos de xícara ao invés de dizerem que se trata de tantos mililitros. Tenham a santa paciência! Forno à temperatura média. Vai te danar!
Sirvo-me de outro cálice de porto, viro o cálice de um só gole e continuo no meu discurso:
– A falta de uniformização das medidas é um retrocesso para a nossa nação. Sucrilhos, macarrão instantâneo, molho de tomate, geléia, coco ralado, sapatos... Nada está padronizado. Estamos a léguas de distância dos povos desenvolvidos!
Resolvi respirar e dar um dedo de prosa:
– Querida, você sempre soube preparar comidas maravilhosas. O que foi que houve? De verdade?
– Bom, eu só tinha ovos de codorna. Então quis saber quantos ovos de codorna seriam equivalentes a um de galinha. E principalmente queria saber onde você havia escondido a garrafa de vinho do porto.

※ ※ ※ ※ ※
Este texto foi extraído de “von Silva” – livro que aguarda publicação

Um comentário:

Larissa Marques - LM@rq disse...

Ai, que lindo. Sinto um personagem muito carinhoso e uma personagem pouco habilidosa na cozinha, risos múltiplos. Adoro sua culinária!
Beijo!

 
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