24 janeiro 2007

Pirenópolis

Sábado completo. Perfeito. Com a namorada passeei em Pirenópolis.
Acordamos sem pressa e após uma gostosa espreguiçada ouvi a pergunta:
- Vamos a Pirenópolis?
- Só se for agora!
O relógio da cabeceira, com seus números vermelhos, indicava nove horas.
Brasília e Pirenópolis são tão próximos que a música do rádio só foi interrompida na altura do majestoso Salto Corumbá. Do acostamento, registramos o momento com a máquina digital. Percorremos mais algumas curvas da Serra dos Pirineus até chegarmos ao pavimento de pedras da cidade.
Encostamos o carro à beira do antigo presídio, bem junto à ponte cor de sangue do Rio das Almas. Trocamos as blusas por camisetas ecológicas, tomamos refrigerante e recebemos as informações para o passeio. Coisa leve, para abrir o apetite.
Sob o sol, caminhamos pela Estrada do Norte construída no século XVIII pelos negros escravos. A nos espiar estavam os troncos amarelos dos paus mulatos, árvores cujos troncos amarelos são tão lisos que não permitem a escalada pelos micos abundantes na região. A água gelada das cachoeiras acalmou nossos pés cansados e gargantas secas.
O retorno tranqüilo nos levou para a cidade acolhedora. Mil opções de culinárias variadas nos aguardavam. Forno à lenha, comida goiana, cozinha mineira, pizza do alemão, cozinha mediterrânea, crepe francês, sushi e sashimi, esculturas criativas nas frutas do self service.
A cada passo tínhamos que engolir a saliva que teimava em se manifestar a cada cheiro e a cada olhar.
A tradição, o regionalismo, o aconchego e a simplicidade nos conquistaram.
A leitura do cardápio foi saborosa com um dedal de água de alambique combinada com tiras de torresmo.
Peixe na telha, galinha à cabidela, frango com quiabo, arroz com pequi, feijão tropeiro, guariroba refogada, leitão à pururuca.
Na espera, a cerveja com véu de noiva fez companhia. O olho gordo comeu e se lambuzou todo. A ambulante adivinhou nossa hora e ofereceu opções biscoitos caseiros e frutas desidratadas como sobremesa. Pensamos em terminar com café passado na hora. Não acabou. O licor de pequi vai deixar saudades.
Não esperamos baixar a lombeira e a preguiça de uma refeição desapressada.
Tínhamos que retornar a Brasília para um compromisso noturno. Entramos no carro passamos em frente à Matriz de Nossa Senhora do Rosário, maltratada pelo pavoroso incêndio em 2002, apreciamos o azul do Theatro. Demos mais uma voltinha e... prevaleceu o prazer e o bom senso. Visitamos o orquidário, passeamos na praça do coreto, compramos uma lembrança. A Rua do Rosário esperava por nós. Aceitamos o convite e amamos loja por loja.
Vimos muito artesanato, cultura e criatividade. Cabeças de touro em papel machê, semente de baru torrada, cristais e prismas esotéricos, passadeiras de mesa feitos em teares manuais, ferro de passar esquentado a carvão, móveis rústicos de madeira retorcida do cerrado, colheres de pau-brasil, camisetas com flores do cerrado, tachos de cobre, porcelana portuguesa ao som de disco 78 rotações tocadas num gramofone dourado, quadros de pedigree com bacalhau. Ainda bem que reservamos um dinheirinho! Impossível retornar de mãos vazias.
O sol começou a se despedir. As mesas na rua começaram a ser freqüentadas pela juventude bronzeada. A música preencheu espaços.
A responsabilidade do retorno nos convocou. Deixamos para trás a certeza de breve retorno. Agora mais longo. Há inúmeras opções maravilhosas para dormir e sonhar. Ou sonhar e dormir.
Pirenópolis, até breve!

※※※※※

A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário é a mais antiga do Estado de Goiás, foi construída por escravos no arraial de Meia Ponte, entre 1727 e 1738. Um grande incêndio destruiu a maior parte da igreja na noite de 5 de setembro de 2002. Com isso, imagens, paredes, pinturas do forro e parte do mobiliário foram seriamente comprometidos pelo fogo. Todo o telhado e uma das torres e todo telhado desabaram.
A igreja foi restaurada e entregue ao público em 30 de março de 2006.

18 janeiro 2007

Sempre o Nome


Sempre achei interessante o carma, o peso, a responsabilidade e os significados que um nome carrega. Em certo período colecionei listas de vestibulares, resultados de concursos, relações de atletas nos campeonatos de futebol, lista de funcionários e qualquer referência em que houvesse algum nome marcante. Com certeza não sou o primeiro a escrever sobre este polêmico assunto e tampouco serei o último. Aliás, considero este tema tão forte que recorro a ele sempre que surge a oportunidade. O estudo sério ou curioso tem até nome: antroponímia.
Um dos nomes que me instigou a curiosidade foi João Né. Operário em uma obra. Tive a oportunidade de conhecê-lo e perguntar a origem do curioso sobrenome. Juro, pelo que há de mais sagrado, a resposta foi que ao ser registrado, o funcionário do cartório teria perguntado qual o nome da criança, ao que o pai mineiro teria respondido é João, né. Para o azar do garoto.
Outro caso curioso aconteceu durante a Segunda Grande Guerra. Naquele período era proibido falar alemão. O pai tentou registrar o filho Hans Jordan. O escrevente argumentou que se era proibido falar alemão, muito mais grave seria registrar com nome alemão. O pai não se fez de rogado e o menino sustentou orgulhoso e diferente nome de Hans Caramuru Jordan.
O melhor amigo de papai era Darcy, nome dúbio masculino e feminino, Darcy Pinto da Rocha Campos. Ao se apresentar gracejava que o Pinto era da mãe. E não é o único caso. O artista Picasso, aliás, Pablo Diego Jose Francisco de la Paula Juan Nepomuceno Maria de los Remedios Cipriano de la Santissima Trindade Ruiz y Picasso, era Picasso por parte de mãe.
Ainda tem uma conhecida que ao casar não quis o sobrenome dele. Motivo pelo qual até hoje não tem filhos. Ela não quis o Pinto do marido. Mas isso já é outra história.
Conheci uma infeliz que foi batizada Maria do Rego Virgem Santos e não tive a ousadia de perguntar porquê o pai dela escolheu aquele nome. Seria alguma vingança contra a mãe da infeliz? Ou desejo para o futuro da filha?
Outro dia, no programa do Jô, um cuidador de carros disse que nomeu o filho Hilux em homenagem à caminhonete do mesmo modelo, que achava linda.
Famosos da literatura de relação de nomes estranhos: Maria Prostituta do Brasil, Rodo Metálico e Cafiaspirina.
O Congresso Nacional cooperou com algumas curiosidades: Um Dois Três de Oliveira Quatro, Pinga Fogo, Onaireves (Severaino ao contrário) de Moura, Lavoisier Maia, Inocêncio (que de inocente nada tem) Oliveira, Íris Resende e esposa Íris Resende, Dr. Rosinha, Ursicino Queiroz, Ronivon Santigo.
Se lhe perguntarem qual dos irmãos bíblicos matou o outro, a resposta é facílima. Você conhece alguém homenageando Caim?
Freqüentes também são os nomes que trazem homenagem a personagens famosos: Confúcio, Hitler, Lincoln, Maicon (sic Jackson), Rommel, Gutenberg, Temístocles, Jesus, Joana D’Arc, Lenine, Mozart. E até um esdrúxulo Jatoperi, ou algo assim, numa homenagem de um inglês ao ataque da Seleção Brasileira da Copa do Mundo em 1970 (Jairzinho, Tostão, Pelé e Rivelino).
O sobrenome representa a continuidade familiar. O filho, às vezes, tem a vida facilitada, outras vezes, nem tanto.
Considero um fardo a escolha impensada. Na dúvida não ultrapasse. Consulte.
Somente pais com mente perversa, irresponsável ou absolutamente ingênua escolhem nomes como Cornélio, Florindo, Florêncio, Modesto. Existem aqueles que invariavelmente levam a gracinhas repetitivas: Ao Humberto sempre perguntam se o irmão dele é o Doisberto; O Tadeu sempre ouvirá pergunta se forma dupla com Tadando; ao Wilmar sempre informam que vi o céu; a infeliz Raimunda é sempre associada à rima nada profunda.
Outras vezes os pais realmente não tem mérito nenhum e os filhos são abençoados com nomes que aparecem em canções maravilhosas. Luíza do Tom Jobim para ficar no exemplo. O problema é quando acontece o inverso. Quando a Aids surgiu o governo encampou propaganda onde os homens deveriam proteger o Bráulio. Chico Buarque depois de difundir e propagar Carolinas jogou pedras em todas as Genis da face Terra. Houve música da década de 70 em que depois de muita insinuação de opção sexual encerrava com o refrão e o nome dele é Waldemar. Todos os Aurélios em algum momento são chamados de pai dos burros. E até hoje todos os Zezés sofrem com a pergunta será que ele é, será que ele é?
No mínimo é curioso quando os pais resolvem homenagear alguma nação:
Ítalo, Germano, Israel, Franco.
Nosso país é fantástico, temos liberdade de expressão. E, por direito adquirido, os pais resolveram criar moda juntando e criando novos e originais nomes. Pega a primeira sílaba do nome dele, junta com a última sílaba do nome dela, uma pitadinha do nome dos sogros e pronto está criado mais um mágico e singular prenome: Auricélia, Raimurildo, Josicléia, Edylcea, Loresmar, Marconeisson, Rosialva, Rosineide, Derlopidas, Altomires, Jaminsom, Jorzely, Flavamario, Sonijardo, Eilovir e o tudo mais que a imaginação puder criar.
A outra moda é estrangeirar usando e abusando ipsilones, kas e dabliús, além de trocar a grafia de acordo com a temperatura ou qualquer parâmetro ou nenhum parâmetro. Antigamente ficávamos apenas com meia dúzia de combinações de Terezas e Heloísas. É sempre desagradável ter que explicar:
– Olha, é Denise com zê, viu!
Numa reportagem recente, li que um zeloso escrivão disponibilizou um cardápio com dezoito grafias diferentes para Washington. Por favor, gostaria do número nove combinado com o sete do Rooswelt.
Nos países nórdicos, ao escolherem nomes para os filhos eles não acrescentam Filho nem Júnior, justapõe filho na língua deles, son. Daí Johnsson, Davidson, Cristianson e Williamson. Emerson, Wilson e Creysson não tem nada a ver com isso.
Na França há um livro com todos os nomes e ninguém pode ser registrado por outro além daqueles. Por isso que todo francês é Pierre, Jean Marie ou François. Este último serve para homens ou mulheres. Melhor que em Portugal que só tem dois nomes: Joaquim e Manuel.
Em Nova Iorque havia um sujeito que queria que seu filho fosse o primeiro da lista telefônica e pagou ao escrevente um extra e batizou o filho com o sobrenome Aaabrahan issso meeesmo com treees aaas. Será o primeiro até que sobrevenha algum Aaaabraham.
Recentemente li que os norte-americanos também usufruem a liberdade de criação no batismo dos new americans. Estou louco para conhecer algum Iemanjá Lee ou Tucunaré Jones.
Aliás, nossa herança indígena legou vários nomes bonitos e significativos, pena estarem em desuso: Ubiratan, Ubirajara, Ibaté, Jurandir, Jandira, Iraci, Iracema, a virgem dos lábios de mel, Capitu do Machado de Assis, Moacir, Irajá, Jussara, Murici, Sinara, Tabajara, Itupi, Moema, Oberdan, Gilmar, Valdeci, Guaraci, Jacira, Juvenal, Peri, Ceci e Iara.Meu nome é tão comum, Roberto, origem latina, nenhum significado especial. Será? Após longos e tediosos estudos descobri o enigma que carrego. Meu nome foi gerado algum tempo após o assim denominado eixo, Itália, Alemanha e Japão guerrearem contra o resto do mundo. O meu nome foi composto pela primeira sílaba de cada uma das capitais daqueles países: Roma, Berlim e Tóquio.

Pleonasmo

– Prezados senhores, é com imenso orgulho que passo a palavra ao mais ilustre filho da nossa terra. Ele já foi vereador, agora é nosso prefeito e será nosso representante junto ao governo estadual. Com vocês, o redundante e repetitivo Sr. José Pleonasmo do Apita e Silva.
– Nesta maravilhosa noite em que vejo com meus olhos uma platéia repleta de gente, gostaria, antes de mais nada, agradecer a presença das autoridades do almirante da marinha e do brigadeiro da aeronáutica. Considero um ponto positivo a meu favor, contar com tão valiosas freqüências. Convido-os a subirem para cima do palanque. Eu, particularmente, tenho o prazer de externar para esta digna gente de trabalhadores que, ambos os dois, almirante e general, estarão no nosso partido para somar forças e quem sabe monopolizar a exclusividade de novos empregos. A nossa experiência anterior sugere que devemos sempre, e todas às vezes, cuidar dos pequenos detalhes para que tenhamos uma população com fartura de alimentos diariamente. Dentre estes acontecimentos que acontecem vejo muitas crianças com sorriso nos lábios. Recentemente, tive uma surpresa inesperada e consegui resolver as relações bilaterais de dois municípios vizinhos. Com a minha equipe planejo planos antecipadamente para o futuro de forma que os empréstimos temporários não mais acontecerão no erário público. Na minha opinião, particularmente, do meu ponto de vista temos que ser a favor da felicidade geral do povo e da população. Simultaneamente, concomitantemente e ao mesmo tempo farei com que todos os impostos sejam reduzidos. Para encerrar quero deixar um epílogo final com o agradecimento por todo o consenso da esmagadora maioria que vota em mim. Preciso do voto de vocês para enriquecer minha autobiografia.
– Puxa, Vossa Excelência hoje se superou a si mesmo. Por que toda esta alegria?
– É que eu inaugurei aquela moça pela terceira vez.

17 janeiro 2007

Gaita de Foles

Acordei no meio de noite. Olhei para o relógio que brilhava três horas da manhã. Fechei os olhos novamente para retomar meu sonho.
Eu estava num campo verde claro cercado por dezenas de ovelhas. A relva era salpicada de rochas cinzentas, mesmo tom do céu. Eu era pastor em algum lugar da Escócia e ouvia a música de uma gaita de foles.
Abri novamente os olhos, levantei e rumei para o banheiro. Sonho engraçado, meu único contato com os escoceses foi o uísque que tomei há uma semana.
Fui buscar um copo d’água e, surpreso, ouvi a música do sonho invadindo minha cozinha.
Curioso, sem acender as luzes, fui à janela.
Vi a cena mais surreal da minha vida. Um magrelo alto, sem camisa e descalço tocando gaita de foles em baixo da luz do poste. Enquanto tocava aquelas notas uníssonas, dançava como se estivesse num palco sob refletores. Na sombra estava a platéia: um vira-lata preto, deitado com a cabeça entre as patas, curtindo a música do dono.
Tive vontade de descer e conversar com a estranha figura. Eu não queria perguntar a marca do uísque.
Queria saber se tinha um pouco para mim.

16 janeiro 2007

A Picape


– O casal foi lá em casa na hora do almoço. Confirmei que a minha camionete era de cabine dupla. Entraram e minha esposa ainda ofereceu aos dois um doce de abóbora com coco. Célia aceitou e as duas mulheres ficaram conversando enquanto nos dirigimos ao térreo onde a picape estava estacionada. Fazia muito calor e lembro-me de que no elevador o Fernando perguntou se a picape tinha ar condicionado.
– E depois?
– O Fernando examinou detalhadamente a pintura, procurou diferenças de brilho, observou se as frestas das portas e capô estavam uniformes. Abriu o porta-malas e confirmou que a lataria não sofreu nenhuma avaria. Quando examinou o motor comentou que não gostava quando o motor era lavado, pois ocultava possíveis vazamentos. Percebi que os olhos dele brilharam quando viu a quilometragem. Eu ainda disse que eram 28 mil quilômetros de asfalto da cidade e de uma única e maravilhosa viagem percorrendo todo o nordeste em lua-de-mel.
– Aí, o Fernando virou a chave e ouviu o ronco do motor diesel. Ele fechou a porta, abaixou o vidro e perguntou se a rua à frente era de mão para a esquerda ou a para direita. Engatou a primeira e saiu lentamente.
– E a senhora, dona Andréia?
– Fiquei ouvindo a Célia me contar que o Fernando era uma pessoa muito querida. Que eles passaram a noite em claro se amando loucamente e hoje, pela manhã, juntos, fizeram compras no shopping. Ela tinha ganho aquela blusa e a calça que estava usando. A bolsa também era nova para combinar com as sandálias. Ela estava eufórica porque o Fernando iria apresentá-la para a família dele e gostaria que ela estivesse maravilhosa. Até um relógio ela ganhou.
– E o que mais?
– Ela disse que estava apaixonada pelo Fernando, que ele tinha muito gosto e que escolheu pessoalmente aquela blusa. Ela disse que deveria ter um decote atraente porém sem ser vulgar. Que detestava vulgaridades.
– Como foi que a senhora, dona Célia, conheceu o senhor Fernando?
– Eu me formei em pedagogia e não consegui encontrar emprego. Trabalhei como secretária num escritório de advogados por seis anos, fiquei desempregada e resolvi ganhar dinheiro da mesma forma como paguei minha faculdade. Coloquei um anúncio no jornal e foi daí que o Fernando me ligou.
– Então a senhora conheceu o Sr. Fernando ontem à noite, fizeram um programa, foram às compras, aposto que acabaram com um talão de cheques furtado, e depois escolheram a picape do nosso amigo depoente.
– É, seu delegado, é por isso que acho que o desgraçado não volta mais com a minha caminhonete! – Exclamou furioso o ex-dono da caminhonete.

10 janeiro 2007

Hantavirose

Na morte todas as pessoas são glorificadas. São esquecidos os pecados e desventuras, à beira da cova o falecido é colocado como anjo.
O atestado de óbito, de uma forma ou de outra, presume o modos vivendum do extinto.
Cirrose hepática: era um camarada alegre, sempre pagava uma bebida...
Aids: tinha uma vida sexual intensa e feliz...
Enfarto: pessoa preocupada com os próximos...
Acidente de carro: acabou de comprar um carro novo, estava realizado...
Hantavirose: cheirou cocô de rato.
Ninguém merece.
※ ※ ※ ※ ※
O quadro "Preparando Enterro na Rede", do pintor Cândido Portinari - avaliado em US$ 1 milhão foi roubado em 2005 da Galeria Thomas Cohn.

07 janeiro 2007


O funcionário da galeria de arte recebeu a incumbência de catalogar todos os quadros em exposição.
Com a fita métrica na mão mediu um por um e anotou autor e descrição do quadro. A tarefa era fácil e agradável. Paisagens, animais ou figurativos. De vez em quando empacava no reconhecimento de alguma flor. Ele conhecia rosas, hortênsias e tulipas. Teve que consultar especialista para reconhecer helicônias. O trabalho ia maravilhosamente bem até chegar à área dos abstratos. Aquilo fugia à realidade. Ele contornou a situação embarcando nos sentimentos e passou a batizar os quadros com pomposos nomes: paixão alucinada, caminho da verdade, andarilho noturno, acabou o bolo de chocolate. Diversão pura.
Após medir e anotar as dimensões de mais uma tela defrontou-se com borrões acinzentados desconexos. As manchas indefinidas remeteram a um pesadelo depressivo e agressivo. Ele se recusava a designar pinturas com sentimentos ou nomes negativistas. Neste caso considerava a tarefa impossível. Resolveu ouvir a opinião dos visitantes da exposição para chegar a alguma solução. Assim rapidamente batizou o quadro rã.
É que dois visitantes indagados a opinar sobre o quadro em questão responderam com outra pergunta:
- Hã?
※ ※ ※ ※ ※
Foto de Roberto Klotz na Pinacoteca em São Paulo.

Acento

Ainda no ginásio, naqueles tempos em que ainda havia ginásio, naqueles tempos em que a professora tinha autoridade, naqueles tempos em que a professora era respeitada, naqueles tempos em que bunda era palavrão, naqueles tempos em que fumávamos escondidos na escola, naqueles tempos em que todas as meninas iam de saia para a escola. Houve um dia, no último ano do ginásio, que eu me lembro de tudo como se estivesse acontecendo neste exato minuto.
A professora, em pé no tablado, junto ao quadro negro, provocando contraste com seu impecável jaleco branco que cobria e protegia do pó de giz o vestido com a barra na exata altura do joelho. Sapatos escuros com salto grosso de meia altura. Penteado endurecido pelo laquê. Ruge, pó de arroz e batom discreto compunham a máscara por detrás dos óculos de aros largos. No bolso do jaleco o nome bordado em letras azuis: Prof. a Leila.
Professora séria, amante do seu trabalho, exercendo sua vocação, compenetrada, sisuda, austera, responsável, rigorosa e, cá entre nós, bem feinha.

Aula de português, acentuação gráfica.
– Palavras homógrafas não homófonas são acentuadas.
– Como é? Pergunta você.
– Isso mesmo, palavras com grafias iguais e sons diferentes eram acentuadas para serem distintas umas das outras. Era o caso de rôla – pomba e rola – do verbo rolar.
– Absurdo botarem acento em boa. Nem Lisboa nem K-Boa.
– Oxítonas terminadas em a, e, o são acentuadas.
– Nem pensar em acentuar siri, urubu e tatu. – E de agora em diante, ai se eu souber de algum aluno que piche a parede mandando professora mandar tomar no cu. Que o faça sem acento. Cu definitivamente não tem acento.

A Unha


Perguntaram-me sobre o que escrevo. Como resposta disse que escrevia sobre o tudo, sobre o nada ou qualquer coisa entre aqueles dois.
– Coisa louca! Parece um camarada que contava piada sobre qualquer tema, bastava dizer uma palavra e lá ia ele contar piada usando aquela palavra. É isso mesmo?
– É, pode ser.
– Então vou escolher uma palavra e duvido você escrever sobre isso. Humm... amor? Não. Política? Não. Uma palavra, não um tema. Nuvem, não. Cachorro. Tem tanta gente escrevendo sobre cachorros. Janela. Essa é muito fácil. Já sei. Desafio a escrever sobre unha. Isso mesmo, quero que escreva sobre a unha.
– Isso é piada?
– Está entre o tudo e o nada!
– Bem mais perto do nada.
– Pediu arrêgo? Num dá conta?
Cocei a cabeça e topei a empreitada.
Se eu não tivesse unha como iria coçar a cabeça. É para isso que serve a unha: para se coçar. A gente pode coçar com força ou fazendo carinho. Com a unha a gente pode tirar casquinha da ferida daquela picada de mosquito. Tem gente que tira meleca do nariz com a unha. Que nojo! Juro que eu nunca fiz isto. Pelo menos quando tinha alguém olhando.
A primeira coisa é consultar o pai-dos-burros. Quando a gente tem um à mão. Quando a gente não tem, a gente fica imaginando a descrição à respeito:
– pedaço de osso que não é osso e fica na ponta dos dedos;
– utensílio que as mulheres quebram ao fechar gavetas;
– arma usada pelas felinas em briga de rua;
– coisa que continua crescendo junto com os cabelos quando a gente morre;
– instrumento penetrante usado por algumas mulheres para cravar nas costas dos amados na hora do orgasmo;
– ferramenta disponível nas lotéricas para as raspadinhas;
– coisa utilizada para retirar alface do dente;
– apêndice que semanalmente nos obriga procurar por toda casa a tesourinha de cortar unhas;
– objeto que, quando recém-pintado, serve de desculpa para as mulheres pedirem ajuda para calçarem sapatos;
– passatempo com os quais funcionários públicos usam o expediente para limpeza, aparo e lixamento;
– aparador de batidas de martelo;
– instrumento de tortura para as mulheres indecisas na hora de escolher a cor ao pintarem as unhas;
– calmante ingerido nos filmes de terror.

– Uau! Peguei o touro à unha e o derrubei!
 
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