18 dezembro 2007

Por favor deixe seu recado...


Estarei ausente por alguns dias. Retorno antes da virada do ano se o avião não cair. No Natal, desejo que o Papai Noel traga bastante sexo para você.
Minha secretária estará de plantão peça para ela anotar seus recados, solicitei que ela organizasse meu escritório na minha ausência.

16 dezembro 2007

Pombos carnívoros

Nestes tempos de Tsunamis, o Correio Braziliense não publicou, acredito que por falta de espaço, a grande desgraça acontecida aqui na nossa casa. A revista Veja, conforme fonte segura, já está com seus repórteres preparando uma grande matéria e procurando a causa da mutação. Columbófilos consultados disseram que já houve antecedentes tanto numa praça de Versalhes, Paris, quanto em Washington, no Capitólio. O motivo da mutação, ainda conforme o presidente da Associação Brasileira dos Criadores de Pombas – ABCP, José Carlos Paloma Filho, é a proximidade com o poder que transforma as delicadas aves em agressivas pombas carnívoras.
Abraços,
Klotz

Brasília Urgente – Hoje de manhã, na Praça dos Três Poderes, pombos carnívoros atacaram turistas. A primeira vítima foi uma menina de 5 anos, MDM, que ao oferecer milho aos símbolos da paz teve o dedo anular devorado pelas aves mutantes. Logo em seguida um turista, Severino Morais Silva de 56 anos, vindo do interior da Paraíba teve uma orelha decepada pelas feras voadoras. A imagem da turista estrangeira foi feita por fotógrafo amador pouco antes de Elisabeth Bourbon, 27 anos, ser devorada pelos 17 pombos.

06 dezembro 2007

A bunda de Darwin

O Brasil é um país maravilhoso por abraçar as diferenças raciais com naturalidade.
Eu estava na fila do cinema quando vi, um pouco à frente, um casal diferente. Ela de traços orientais. Olhos puxados, pele amarelada, cabelos negros escorridos, peitos semelhantes a ovos fritos e ausência de bunda. Ele de traços africanos. Pele cor de ébano, lábios grossos, nariz achatado e bundão.
Achei engraçados os dois traseiros ladeados.
Atiçou-me a curiosidade. A mesma curiosidade que teve Darwin ao desembarcar em Galápagos e observar as diferentes espécies de animais.
Lá, em Galápagos, ele desenvolveu a Teoria da Evolução em que, na luta pela vida, os organismos desenvolvem características que favorecem a sobrevivência da espécie. Assim a girafa alongou o pescoço para alcançar as folhas mais altas das árvores e o camelo dos desertos, para armazenar água, consegue beber até 120 litros de água de uma única vez. Nenhum destes animais estava em Galápagos como o filme que eu veria pouco depois também não se passava naquela ilha.
Aquelas bundas e a teoria da evolução me fizeram refletir que, lá no passado distante, a cópula humana devia ser como a dos outros quadrúpedes, naquela posição em que Napoleão perdeu a guerra.
E se o oriental, é o que dizem, tem um bilau pequeno então a fêmea oriental de geração em geração, teve sua poupança diminuída para que houvesse a fecundação.
Por outro lado, isto é, pelo mesmo lado, o traseiro, as fêmeas africanas, com o passar das gerações tiveram sua poupança aumentada para evitar as espetadas doloridas das enormes – é o que dizem – espadas africanas.
Coitada daquela japonesa namorando o negão.

02 dezembro 2007

Quase pisei!

Nenhuma novidade. Todos os dias caminho. Todos os dias desvio de cocôs caninos. Todos os dias fico estressado. Hoje resolvi não me estressar.
Tenho lido algumas revistas e artigos de auto-ajuda. E li algo parecido com o provérbio que diz: “Se Deus lhe der um limão faça um limonada”. Agora que estréio pisante novo, branquinho, fico mais preocupado ainda em não batizá-lo com cores marrons. Dizem que marrom dá azar. Pura superstição. Mas, voltando ao provérbio e o mal que me aflige nas manhãs caminhantes, imagino que fazer limonada de titica de cachorro não é exatamente a proposta do provérbio. Nos livros de auto-ajuda os exemplos e os resultados sempre são imediatos e de facílima aplicação. Está difícil imaginar-me fazendo limonada tão insólita.
Nem sei se os livros de auto-ajuda estão preparados para ensinar seus dogmas aos caminhantes. Dizem que para estimular a estima e confiança devemos caminhar com o olhar acima da linha do horizonte. Olhar para baixo deprime. Em São Paulo, com aquele monte de edifícios, todos ficarão com torcicolo. E tem mais, se eu olhar para cima enquanto bato pernas, como fazer para desviar das lembranças caninas? Meu estimado tênis vai ficar deprimido e sujo.
Se Deus lhe der um limão faça uma limonada. O que é que isso tem a ver com as fezes caninas? Não foi o Todo Poderoso que as espalhou calçadas afora. Se tivesse sido teria realizado um trabalho perfeito. Não teríamos como escapar. A cada passo estaríamos xingando e blasfemando. O Divino não iria provocar a ira dos homens contra sua Pessoa.
Acredito que o provérbio sugira que devo pegar o cocô, literariamente é claro, e transformá-lo em algo agradável e que, ao invés de provocar aborrecimentos traga alegria.Paro em frente à primeira marca canina e observo a longa calçada. O desenho do cimentado é curioso, lembra um longo jogo de amarelinha. Um pé, depois dois pés, um pé novamente, depois dois pés, seguindo até onde o olhar alcança. Abro um largo sorriso, vou tomar a minha limonada, recolho o pé esquerdo, imitando saci pererê, e salto de amarelinha evitando os quadrados já ocupados.

22 novembro 2007

Calção sem elástico

– Quer ir comigo? Perguntou a apetitosa balzaquiana dentro do elevador.
Antes da pergunta minha resposta já estava pronta: por essa vizinha faço qualquer coisa, até derrubo o presidente e a promovo rainha.
Nossos encontros no elevador não são nada casuais, eu sou apreciador das coisas boas da natureza, chamo o elevador exatamente às 7h15, justo na hora em que ela sai para malhar na academia usando roupinhas coloridas. Prefiro caminhar próximo de casa, em torno da quadra, considero um contra-senso pegar o carro para fazer exercícios. Algumas vezes trocamos olhares e bons-dias quando me atrevo a caminhar até o parque situado a três mil passos de casa. Hoje estou usando meu calção mais antigo. Sempre achei que ele fosse sensual. Agora tenho a prova definitiva. O calção faz a diferença.
Hoje ela está mais cheirosa do que nunca e me pergunta se eu quero ir com ela. Será que devo me ajoelhar e agradecer o atendimento às minhas preces ou simplesmente dizer sim? Será que devo responder que prefiro caminhar perto de casa desviando de cocôs caninos camuflando meu longo compromisso com a namorada? Respondo numa linha defensiva.
– Será um prazer acompanhá-la, se você tiver paciência com os passos lerdos de alguém da minha idade. – Com certeza dirá que não estou velho, que estou enxuto e outros elogios mais...
– Eu já reparei que seus passos são rápidos. O senhor não está tão velho assim. Eu amo esses cabelinhos brancos que o senhor tem nas têmporas...
Enquanto me derretia com as doces palavras ela continuou: – O senhor é tão meigo, tão suave, posso chamá-lo vovô?
Quase desisti de ir ao parque.
Chegamos à garagem e fomos direto à vaga onde estava o carrinho da jovem.
Até o parque não trocamos palavras.
Do lado de fora do carro tirei a camisa antes de fechar a porta. Não são apenas as plantas que fazem fotossíntese.
Na entrada do parque coloquei o celular num bolso, o molho de chaves no outro bolso e perguntei se ela vinha com regularidade ao parque para caminhar.
– Gosto de vir aqui. É sossegado, não tem bicicletas zunindo nem cachorros latindo. – Ela respondeu provocando meu assunto recorrente.
– A grande vantagem do parque é caminhar despreocupadamente, pois não há cocôs nas trilhas. Nem grandes nem pequenos. Nem recentes nem ressecados. Até o ar é mais limpo.
Não gostei da minha abordagem escatológica e resolvi mudar de assunto. Na verdade eu já estava arrependido de ter vindo. Ser chamado de vovô é até carinhoso. Beldades como aquela podem me chamar como quiserem, contanto que me chamem. O que me incomoda mesmo é o meu calção. Todos os calções estavam para lavar e assim peguei um velho, do fundo da gaveta, que sempre gostei de usar, mas nem me lembrava porque deixara de usar. Agora redescubro o elástico frouxo. E o calção em vez de se fixar na cintura prefere se acomodar nos joelhos. É lógico que o assunto não poderia ser a falta de elástico.
– Estes ipês estão muito bonitos. Qual deles você prefere? O amarelo ou o rosa?
– Prefiro o amarelo. Pena que as flores estão caindo como se fosse chuva.
Pensei que ela fosse dizer: flores caindo como se fossem calções sem elástico.
Dali para frente, a caminhada que era para ser prazerosa tornou-se um martírio. Passei a segurar as calças com as duas mãos. O peso do celular e das chaves multiplicou o poder da gravidade e para piorar, a nossa conversa entrou em queda livre. A inflação cai, o ministro cai, caem os aviões, cai a ligação, peitos e bundas caem. Qualquer que fosse o assunto, caía na vala comum das coisas que caem. A caminhada seguia em passo forte no sol quente. O suor que rolava pela testa era de preocupação em disfarçar o calção cadente.
– O senhor tem filhos?
Com a resposta positiva perguntou se aquele moço forte, loiro, de olhos azuis que estava comigo no elevador ontem era o meu filho. Em vez do calção caiu minha ficha.

17 novembro 2007

Juro que não sou ímpio


Outro dia fiquei indignado ao me chamarem ímpio. Tenho fé, eu acredito e penso que cada um tem o direito de escolher no quê acreditar: trevo de quatro folhas, pé de coelho, figa, Papai Noel, estrela cadente, Nossa Senhora da Pá Virada, patuá, vudu espetado, quadrados mágicos ou o poder estimulante da casca de amendoim torrado.
Na minha cozinha tenho um santuário. É um cantinho no meio dos armários que forma um pequeno triângulo onde acomodo velas, folhas de arruda, três búzios e uma garrafa de Coca-Cola. É um exemplar adquirido em um antiquário. Disse-me o vendedor, conferindo legitimidade à minha imagem, que a aquele exemplar foi resgatado sob a poeira de um bar falido da Rota 66, em pleno deserto do Arizona.
Sempre termino meus dias com uma oração à minha santa, agradecendo o lado Coca-Cola da nossa vida.
Esse refrigerante faz parte da minha vida. Ainda pequeno eu consumia Coca-Cola família que rendia quatro copos ou mais. Anos depois, bebia de uma enorme garrafa com um litro. Que foi superada pelo litrão, com 1,2 litros. Que por sua vez foi substituída pela outra de um litro e meio. Nem me lembro quando substituíram o vidro pelo plástico. O que importa é que a garrafa pet, de dois litros domina o mercado embora eu prefira o vasilhame de dois litros e meio. Mas confesso que o meu sonho de consumo, é ter em casa, uma torneira com Coca-Cola gelada encanada.
Já recebi pela internet várias correntes anunciando o poder milagroso do liquido marrom. Dizem que ele faz desaparecer um osso, quando imerso por dois dias e que um dente-de-leite some em uma semana. Informam também que é um poderoso anti-séptico (ou será anticéptico) na limpeza dos motores de caminhões. Informam que o milagre mais comum acontece com os patrulheiros rodoviários americanos que têm à disposição dois galões do precioso liquido no porta-malas para apagar vestígios de sangue nas estradas após acidentes. É por essas e outras que eu acredito no poder da Coca-Cola.
A Coca-Cola é um santo remédio. Quando estamos solitários nos faz companhia e quando estamos em grupo transmite alegria.
Na minha cozinha tenho um local destinado aos vasilhames do refrigerante. Infelizmente só disponho de espaço para três dúzias de pets. A base do armário é sensível ao peso. Eu explico: quando o peso for menor que seis quilos, equivalente a três pets, uma luz vermelha se acende. E quando o peso é menor que quatro quilos, além da luz vermelha, um alarme sonoro agudo dispara indicando alerta máximo. É necessário repor o estoque imediatamente por ameaça de colapso.
Contei toda esta história para que não haja dúvidas de minha religiosidade e fé.
Ontem aconteceu uma tragédia. Eu ia receber visitas logo mais à noite e a cozinha estava brilhando limpeza. Só faltava alimentar a geladeira e os armários com as compras do supermercado empilhadas pelo chão da cozinha. Num ritual de prêmio, sempre abro um refri ao chegar em casa após a realização da cansativa tarefa das compras. Foi o início da tragédia. A Coca recém adquirida explodiu como vulcão quente molhando a minha cara, a camisa, a calça, o armário e todas as compras. Nem nos desenhos animados existe tsunami tão catastrófica.
Sempre fui temente aos deuses e agora recebi a prova definitiva: a deusa Coca-Cola é vingativa. Provoquei a ira da deusa tomando um gole de Pepsi no supermercado.
Na lava marrom escorrida no armário branco ficou a mensagem: “Não terás outros deuses além de mim.”
Apavorado, ajoelhei-me e jurei não ser ímpio: Coca-Cola, isso é que é.

13 novembro 2007

Dança do acasalamento

Somente o vento do final de tarde de verão domingueiro me resgata da preguiça. Apesar do calor que amoleceu a minha inteligência vou para a rua fazer uma caminhada e levantar as mãos aos céus agradecendo o vento forte e repentino.
O calor nos deixa fracos e cansados. O suor cai da testa, molha o peito e desenha desconforto sob as axilas. O vento sopra alívio. O vento é o ar apressado, é o ar que marca presença. Gira cata-ventos multicoloridos e revira guarda-chuvas. Festeiro é quem convida as roupas a dançar nos varais, levanta saias e, querendo algo mais, desnuda as árvores e levanta pipas.
O vento forte provoca desconforto para as aves menores enquanto as maiores aproveitam para fazer mil acrobacias aéreas.
Bem à minha frente, distante, há uma enorme ave pousada. A cor branca se destaca na folhagem verde escura da árvore. Observo que a ave dança em ritmo frenético como se estivesse provocando o vento para alguma aventura. Pelo tamanho do porte não é uma a pomba. Jamais seria uma gaivota, Brasília fica muito longe do mar. Estamos longe de rios ou lagoas, mesmo assim, acredito ser uma garça numa dança de acasalamento.
Caminho na direção da árvore e conforme me aproximo mais curioso fico tentando decifrar o ritmo do pássaro balançante.Agora, com os meus óculos, e a dez passos reconheço um plástico de supermercado, preso no último galho, sorrindo debochado.

31 outubro 2007

Osteoporose infantil

Quando vi que a menininha estava de capacete, joelheiras e cotoveleiras caminhando pela calçada comentei com a minha namorada que a garotinha era uma coitada, que eu estava com muita pena daquela pálida figurinha frágil. A doença dela deveria ser muito grave, provavelmente uma espécie osteoporose infantil em estado muito adiantado de forma que os pais da moleca, para protegê-la obrigavam-na a usar aquela indumentária para não perdê-la para sempre, que ela deveria sofrer muito com aquela roupa quente, e que aquela débil figura deveria ser atormentada impiedosamente com as brincadeiras maldosas dos coleguinhas da escola. Quase derramo uma lágrima salgada de compaixão quando minha companheira interveio.
– Você não viu que ela deixou a bicicleta ali naquela casa?

22 outubro 2007

Dormiu homem, acordou mulher

Almeida muito suado afastou o lençol e se ajeitou melhor no travesseiro. A cabeça estava doendo e havia alguma coisa incomodando a orelha. Sem abrir os olhos tentou tirar o que parecia um botão. O quarto estava escuro e silencioso. Almeida sempre dormiu nu e estranhou que, apesar de ter afastado o lençol, sentia-se vestido. E pior, a roupa apertava-lhe as partes.
A dor de cabeça era mais forte que a curiosidade. Assim, voltou a dormir.
Passadas três horas voltou a se revirar. Sentia-se desconfortável com aquela coisa na orelha e a roupa apertada. Abriu os olhos, enrugando a testa com medo da luz. Não havia luz. Virou-se então para a mesinha de cabeceira a fim de ver as horas. O despertador estava apagado. Almeida, com a cabeça pesada, imaginou que devia ter deixado o livro na frente daqueles números brilhantes na hora de apagar a luz.
Optou por acender o abajur e esticou o braço lerdo. Não encontrou nada. Tateou novamente. Não encontrou o interruptor nem o criado-mudo. Com a outra mão tateou para o lado da esposa e antes de perceber que estava só, estranhou um bolo de cabelos bem no meio da cama. – Que bicho seria aquele? – pensou.
Uma nesga de luz entrava por um cantinho da cortina. Almeida sentou-se e percebeu que aquele não era o seu quarto. O lugar lhe era estranho. Levou as mãos à nuca, como se o gesto pudesse amainar as dores. O paladar acusava gosto de alho, coentro e óleo diesel. Tudo ao mesmo tempo.
Mansamente colocou os pés para fora da cama posicionando-se em direção à janela. Um passo e meio foram suficientes para alcançá-la. Com medo de explodir a própria cabeça, tanta era a dor, empurrou vagarosamente a cortina para o lado. Encontrou vidros sujos de uma janela porca de um quarto imundo.
Virou-se lentamente para examinar o ambiente. Uma cama de casal com lençóis rasgados, uma cadeira de palhinha com um buraco no lugar do assento, uma mesinha com um copo e uma garrafa d’água, um espelho pequeno pendurado na parede próximo da porta e sapatos de salto alto jogados próximos à cadeira. Não havia banheiro. Usava roupas de mulher desqualificada.
Almeida sentiu nojo do lugar e de si. Arrancou o vestido do próprio corpo. Não reconheceu como sua a cueca que usava, olhou melhor e percebeu que estava de calcinha. Procurou suas roupas pelo quarto e não viu nenhuma. Estava sem relógio. Estava sem o seu Rolex de ouro. Olhou novamente para os lençóis e reconheceu no bolo de cabelos uma peruca loira. Constrangido, não sabia se tirava a calcinha ou se ficava com ela. Não sabia o que era pior: ficar de pé no carpete encardido ou sentar na cama do prostíbulo.
Apalpou-se e confirmou um par de brincos. Foi até o espelho para tirar os enfeites e levou mais um susto com a maquiagem borrada.
Almeida estava muito desconfortável. Não estava entendendo nada.
– Por que estou com essa calcinha ridícula? Onde estão minhas roupas? O que estou fazendo aqui? Onde estive ontem à noite? Por que estou me sentindo tão mal? O que houve? O que está havendo? Assalto? Extorsão? Seqüestro?
As pernas tremeram. Sentou-se na cama para reavivar a memória e somou mais um desconforto. Sentiu dores.
Teve ganas de sair da própria pele.
Levantou-se e arrancou a calcinha ensangüentada. Teve ânsias de vômito. Sentiu-se invadido, ultrajado, humilhado. Foi até a mesinha, afastou com asco o copo de geléia e abriu a garrafa de água mineral. Esvaziou no gargalo a água quente e gasosa que não melhorou em nada seu estado desolador.
Almeida sequer tentou abrir a porta. Suas opções eram terríveis: sair nu ou com roupa de mulher.
Voltou a se acomodar na cama. Deitou-se de lado, encolhido em posição fetal.
A cabeça girava, o ânus doía, estava psicologicamente arrasado e agora começou uma dor de barriga.
Procurou lembrar-se da véspera. Não se recordava de nada diferente. Levou as crianças para a escola e, como sempre, foi o primeiro a chegar ao escritório. Almoçou com um cliente e à tarde reuniu-se com os sócios. Rotineiramente, saiu do trabalho às oito horas e pegou o carro no estacionamento. Sentiu um vazio, um branco na memória. Pegou o carro ou não pegou o carro? Para onde foi? Ainda se recordou que precisava abastecer a caminho de casa. Fechou os olhos e começou a refazer seus os passos. Mentalmente desceu o elevador, cumprimentou o zelador, atravessou o pequeno jardim, caminhou à direita na calçada. Lembrou-se que a loja de calçados estava fechada, com a vitrine iluminada. Quando passou em frente da farmácia pensou em pesar-se, não entrou, deixaria para iniciar o regime no outro dia. Atravessou a rua na faixa de pedestres. Quando se aproximou do carro foi abordado por um estranho. – Aquele camarada deve ter me sedado. – Difícil saber o que dói mais. A cabeça, o sentador, a barriga ou a humilhação.
A nossa vítima apurou os ouvidos. Parecia ouvir um telefone. Era o toque abafado de um celular. Encontrou o aparelho dentro do sapato, sob a cadeira.
Antes de atender viu uma coleção de zeros indicando ligação não identificada. Almeida estava apavorado, construiu uma sólida, ética e vencedora carreira judicial, sempre foi pai dedicado e marido fiel. A sociedade reverenciava seu trabalho e desprendimento como fundador de um orfanato de crianças carentes. Era professor honoris causa em duas universidades. Não estava acostumado a tratar com gente de baixo nível.
– Alô. – atendeu seco e desconfiado.
– Eu vi que a Cinderela abriu a cortina. Já encontrou suas fotos embaixo da cama? Com qual deles teve mais prazer?
Num pulo, Almeida saltou para o lado da cama e encontrou quatro fotos impressas em papel de computador, bem diferentes daquelas das colunas sociais.
– O que você quer de mim, seu filho-da-mãe? – Disse com muita raiva, porém medindo as palavras, pois estava em clara desvantagem.
– Eu não quero nada de ratos. Enviei e-mails com as fotos para todos os seus amigos, eles vão adorar ver você sendo amado naquelas posições grotescas.
Almeida colérico, totalmente tomado de ódio, gritou:
– Por que eu?
Do outro lado a voz respondeu segura e acusativa:
– Você deveria ter perguntado isso para a pequena Gabriela. Aquela menina doce, do terceiro andar, que você leva para a escola junto com seu filho.
A vítima transformou-se em réu, o tom agressivo amansou e a ira virou pavor.
– E daí?
– Daí que advogados iguais a você sempre conseguem liminares, habeas corpus e mil artifícios para fugir das penas.
– Aonde você quer chegar?
– Não quero chegar a lugar nenhum. – E cheio de ironia, completou: – Apenas retribuí todo amor que você deu à indefesa Gabriela.
– Quem é você?
– Sou tio dela, delegado de polícia e exterminador de ratos. Você gostou da água gasosa?Antes de cair no chão o condenado contorceu-se de dor e arrependimento. Depois sentiu mais uma forte pontada no estômago causada por raticida.

27 setembro 2007

O telefone

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm.
Era assim que o telefone tocava até recentemente. Hoje qualquer som pode ser de telefone: mugidos bovinos, coachares de rãs, latidos de cães, hinos do time de futebol, um clássico de Beethoven, um hit brega, grito de mãããããe atende o telefone e até o velho e desgastado triiiiiimmm às vezes persiste.
Nós sempre estamos fazendo alguma coisa. Trabalhando, cozinhando, tomando banho, fazendo amor, digitando um texto. Mesmo que estejamos fazendo nada, estamos fazendo alguma coisa. Ver televisão é fazer nada. Somos interrompidos abruptamente por chamada urgente. Todas chamadas são urgentes, devemos largar o que estivermos fazendo para atender a ligação. Largar a refeição, largar o banheiro molhado, largar o chefe falando sozinho, largar a concentração no amor.
– Alô!
– João?
– Não é aqui senhor.
– Té, té, té, te,....
Isto é uma falta de educação grave. Gravíssima. Total falta de respeito para com o próximo que interrompeu uma atividade para dar atenção àquela pessoa desconhecida. A gratidão é um telefone desligado na cara.
Na linguagem dos telefones, quando duas pessoas discutem e uma delas desliga o telefone é o mesmo que uma agressão. Quando o telefone é desligado sem aviso prévio sentimo-nos agredidos.
Muitos fazem isso escondidos no anonimato. – Aquele cara não sabe mesmo quem eu sou e ainda vou ficar pagando ligação de celular para um desconhecido? Desligo mesmo!

Isto já aconteceu inúmeras vezes. Inúmeras vezes perdi o humor por agressão gratuita de um telefone desligado sem explicação.

Mudei minha atitude quando ligam para o meu celular. Retorno o telefonema e educadamente explico a falta de respeito cometida pelo anônimo, o tempo que ele me tomou para atender o telefonema e o tempo que está me tomando para este retorno e mostro minha indignação desligando o telefone na cara deste desgraçado. Desopilo o fígado numa gostosa gargalhada vingativa!

Por conta da internet, nos tempos da linha discada, instalei uma segunda linha de telefone em casa. Pelo fato de morar sozinho não costumava necessitar falar em duas linhas simultaneamente. Em caso de absoluta necessidade ainda havia o celular. Por estes e outros trezentos e quarenta e sete motivos ninguém tinha o número da segunda linha. Às vezes a internet ficava conectada baixando músicas e eu ficava sabendo se a linha caiu ou foi desconectada. Instalei um telefone à antiga que emitia ruído típico ao ser desligado. Problema resolvido. Surgiu problema novo. O telefone tocava. – Diabos! Não dei o número para ninguém! Logo é engano ou vendedor de cotas para um lugar no céu se contribuísse com módicos valores mensais para alguma instituição de caridade.
Dezenas de vezes abandonei atividades para educadamente atender telefonemas indesejados.
Perdi a paciência com uma moça que insistiu por oito vezes que aquele era o número do telefone do novo namorado, que havia feito promessas de amor sob os lençóis suados.
Resolvi contra atacar e pegar desprevenidos os incautos que resolvessem ligar para interromper a minha ocupação.

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
Atendo com voz lenta, grave e funesta.
– Funerária Já Vai Tarde! Em que posso servi-lo?
– Té, té, té, té...
As pessoas ficam sem graça e desligam. Há os persistentes:

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Funerária Já Vai Tarde! Em que posso servi-lo?
Eu queria falar com o João.
– O João não está mais entre os nossos.
– Té, té, té, té...
A brincadeira por repetitiva ficava sem graça. Renovei o prazer em atender telefone!

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Pensão Dona Júlia, boa noite!
– A Márcia está?
– Vai demorar só uns vinte minutos, acabou de subir com um cliente.
– Té, té, té, té...

– Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Pensão Dona Júlia, boa noite!
– De onde?
– Pensão Dona Júlia. Temos apartamentos com e sem banheiro. Servimos farto café da manhã com biscoitinhos caseiros e pão de queijo. Temos janta diariamente. Hoje teremos rabada com agrião, macarronada com molho de tomate, salada de alface e rúcula, a sobremesa o senhor pode escolher entre goiabada e....
– Té, té, té, té... Ninguém agüenta uma pessoa desconhecida com incontinência verbal.
Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Pensão Dona Júlia, boa noite!
– Bom. Eu pensei que era da casa da Heleninha. Tô encostando meu caminhão aqui na Terceira Avenida e tô querendo um quarto. Quanto é, hem?
– Té, té, té, té.... Desliguei só de imaginar o tamanho do negão do outro lado da linha.

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Farmácia Saúde Total, boa tarde!
– Farmácia? Não é da casa da tia Jurema?
– Para casos de falta de memória temos Memorex. Quantos vidros senhor?
– Vai te catar mal criado...Té, té, té, té....

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Farmácia Saúde Total, boa tarde!
– A Cristina está?
– Não senhor. Posso ajudá-lo em mais alguma coisa?
– Ela me deu este telefone há vinte dias. A que horas ela volta?
– Ela foi despedida, senhor... não acredito que volte.
– Despedida?
– Ela não aprendeu a aplicar supositórios e ainda estava vendendo preservativos usados e ...
– Té, té, té, té....

Não entendo este mundo. Tenho procurado conversar com as pessoas e elas sempre desligam o telefone na minha cara. Sou um incompreendido.
– Deve ser a minha voz!

13 setembro 2007

Casa para alugar


Cecília retornou à cidade natal depois de ser escolhida entre uma centena de candidatos à vaga na indústria de laticínios. Cecília queria o emprego. Cecília precisava do emprego, mas acima de tudo Cecília queria resgatar o passado.
Aconteceu na última quarta-feira de agosto de 1947. Na semana anterior Cecília soprou quatro velinhas brancas e ganhou uma caixinha de música. Tudo foi muito rápido. Ela acordou no meio da noite com o barulho de vidro estilhaçando no chão. Em seguida gritos e mais gritos. Um estampido forte e mais outro estampido. Depois, o silêncio. Não teve coragem de abrir a porta. Deu corda na caixinha de música e esperou a mãe. Ou o pai. E deu mais uma vez corda na caixinha de música. E mais outra vez. E mais outra vez. E outra vez mais. Nem pai, nem mãe. Só de manhã, quando o sol espiou pela janela a tia entrou no quarto, abraçou Cecília e pegou-a no colo. Ainda de pijama entraram no carro e viajaram. Cecília não chorou, Cecília não perguntou. Cecília não ouviu. Apenas viajaram. Cecília nunca mais viu seus pais.
Agora, moça feita, estudiosa, bonita e seios fartos. Formou-se na primeira turma de engenharia de alimentos. Aos vinte e cinco anos tinha diploma e três anos de experiência na fabricação de queijos. Voltou para ser gerente de qualidade na maior indústria da região. Era uma vencedora. Hospedou-se em um pequeno hotel. Tinha quinze dias para encontrar moradia e se instalar. Seria muito fácil. Tinha apenas livros e poucas roupas.
Cecília não conhecia a cidade e procurou uma casa próxima à fabrica. Nada agradava. Não queria uma daquelas casas geminadas. Tampouco queria lugar com árvores pequenas. Não havia muitas opções na pequena cidade. A dona da imobiliária sugeriu uma casinha mobiliada de dois pisos próxima à praça do coreto. Era perto da igreja, próximo ao banco e também tinha comércio além da padaria. Seria o lugar ideal para morar.
Pegou a chave na corretora e foi a pé até o endereço com a placa de aluga-se.
Abriu o portão de madeira, deu cinco passos à frente e enfiou a chave, girou duas voltas e a porta se abriu. A sala era pequenininha. Duas poltronas, uma radiola e uma estante com uns vinte livros enquanto do outro lado havia uma mesa redonda e um balcão onde deveria estar a louça. Cecília foi até a janela e puxou a cortina empoeirada. Queria mais luz, queria ar. Precisava de ar.
Cecília olhou para a cozinha, mas dirigiu-se para a escada. Parou antes do antes do primeiro degrau, pousou a mão no corrimão e olhou para cima. Fechou os olhos para concentrar a audição nos ruídos da casa. Arrepiou-se. E pé ante pé começou a escalada. Pensou que já tinha olhado outras casas na cidade e que não havia motivo para ter receio de entrar em qualquer casa. – Mas esta tem ruídos – falou alto. Mais um passo e a madeira ressecada gemeu com o peso da visitante. Cecília parou e apurou a audição novamente. Não sabia se a música vinha de dentro ou de fora. Bem suave. Quase inaudível. Cecília chegou ao patamar do meio da escada, virou para a direita e continuou vagarosamente a ouvir os lamentos da madeira do piso em dueto com os passos. Mais dois choros e alcançou o segundo piso.
Era um corredor estreito e iluminado por janelinha suja de tempo. Havia três portas fechadas. Cecília intuiu que a primeira porta seria a do banheiro. Sem receios, segura, abriu e confirmou sua expectativa. A segurança foi trocada pela dúvida. Avançou mais dois passos e estancou na frente da segunda porta. Os joelhos fraquejaram. Cecília respirou fundo e colocou a mão esquerda na maçaneta girando o trinco dourado. A porta que estava destrancada abriu-se lentamente. Não havia nenhuma luz naquele quarto. A música vinha dali, agora tinha certeza. Não era qualquer música. Vinha da caixinha de música. Não sabia se de dentro ou de fora da sua cabeça.

27 agosto 2007

Inverno

Como todos os dias, levanto e olho o tempo pela janela. Nestes últimos dias de agosto não existe possibilidade de chuva no Planalto Central. Ao contrário, em casa colocamos umidificadores para amainar a seca. Na falta, espalhamos bacias e toalhas molhadas. Crianças são as que mais sofrem.
Pertinho, vejo verde grama irrigada, mais à frente, suave névoa escondendo calmas águas do Paranoá. Ao fundo o horizonte vermelho.
Troco o pijama por uma camiseta e meias de lã por meias esportivas. Me espreguiço e vou caminhar. Na porta de saída do bloco recebo o impacto do frio no peito. Cumprimento o empacotado porteiro e, em vez de esquerda, escolho a direita. Às vezes temos que sair da rotina e mudar os nossos trajetos e rumos diários. Resolvi trocar as calçadas sujas de cocô de cachorro de madame por calçada marginal ao mato aparado em superquadra ainda não construída.
Andei cem metros e ultrapassei a linha de alcance dos aspersores. A grama mudou de cor para sem cor. Mais adiante formigas cruzaram a calçada numa trilha de cavacos marrons desrespeitando o caminho urbanamente civilizado. Prosseguindo, levantei a vista para o céu sereno e desmaiado. Abri os braços com as palmas abertas para captar energia. A força veio tão forte que podia senti-la pousando nas mãos. Emocionado e incrédulo eu queria ver para crer. Vi partículas pretas. Apurei o olhar e constatei fuligem. Para muito além da névoa seca o fogo pintava o horizonte de vermelho. Na lonjura a cor é suave.
Ainda é cedo. O dia acordou, preguiçoso, ainda não levantou. Está quase silencioso, até ouço cachorros latindo à distância. Devem ser vira-latas, cachorros escovados latem mais tarde.
As árvores nativas não são bonitas. Os galhos são tortos e retorcidos. São errados. Os troncos parrudos têm uma couraça de jacaré para sobreviver nas queimadas. E nesta época do ano, além de não serem bonitas, estão nuas mostrando esqueletos de campos de concentração. Sem conhecê-las não damos valor.
A cabeça recém-despertada capta sem chiados o que me acerca. Passarinho não chia. Passarinho pia. O pio do sabiá está muito próximo.
– Olha lá! Olha lá! Ouça, preste atenção! Faça da boca um assobio e repita. Repita assobiando: – piedade-sinhô... piedade... tendó-de-nós... piedade... sinhô. Não é bonito? É apaixonante.
Continuo meu passo e vejo uma fumacinha no meio do terreno litigioso. Ali não há muito mato para ser queimado. Entretanto o instinto de preservação, nesta época de seca, sugere que eu apague o fogo enquanto estiver baixo. Eu mudo meu rumo na direção da fumaça. Nem precisei caminhar muito. Em volta do fogo vi quatro boquinhas escancaradas de fome, dor, frio e morte. O pai oferecia o desjejum caçado nas caçambas peçonhentas. Adiante da fogueira havia uma tenda de lona preta sob uma árvore de casca dura.
A única luz que havia para aqueles miseráveis urbanos era o amarelo solar das flores do ipê.
Piedade-sinhô... piedade... tendó-de-nós... piedade... sinhô...

18 agosto 2007

Recepção ao primeiro-ministro do Reino da Estroína

Minha bela adormecida,

Que alegria receber notícias suas depois de tanto tempo. Estou flutuando nas nuvens por saber que você virá a Brasília para a recepção ao primeiro-ministro do Reino da Estróina, Frederico Gustavo III no Palácio do Itamaraty.
Quantas saudades e recordações guardo da nossa infância quando sua brincadeira predileta era brincar de princesa. Eu tinha que duelar com malfeitores, matar dragões e me ajoelhar aos seus pés para ser consagrado cavalheiro e merecer o prêmio máximo: um beijo na testa. Você estava sempre linda, coroada com uma tiara de lantejoulas brilhantes. Os tempos se passaram, e na última vez em que a vi, antes de mudar para Brasília você estava resplandecente no pôr-do-sol, caminhamos de mãos dadas e trocamos um único e delicioso beijo selando respeito e amizade eternas. Deixei-a na porta do castelo, depois subi no alazão e vim embora.
Passados quase trinta anos, você terá seu sonho realizado: um convite para participar de uma festa na corte.
Até parece que escutei sua voz macia quanto me escreveu:
– “Meu cavalheiro, como será e como devo ir ao baile?”
Minha querida, a recepção não será um baile, não haverá orquestra de violinos e já não se dançam valsas nos salões. A presença do homenageado no salão não será anunciada pelo bater do bastão pelo mestre de cerimônias. Nem a nobreza estará perfilada à entrada para recepcionar os ilustres convidados.
No convite consta traje de gala. O que requer vestidos longos para as damas e fraque para os cavalheiros. Os oficiais das três armas têm trajes próprios para esses eventos. É a oportunidade de ostentar orgulhosamente as insígnias que representam as condecorações e medalhas conquistadas por méritos. É também o momento em que ministros e altas autoridades estufam o peito com as diversas comendas e honrarias. Aqueles que não as têm, penduram medalhas de futebol de salão ou de concursos literários. Ouvi dizer que o presidente usará o colar com a grã-cruz de Estróina.
Não se preocupe em mandar costurar vestido especial, faça como todos fazem: alugue roupa de dourados e pratas. Não se preocupe com jóias, também há imitações perfeitas para alugar. Quem sabe você encontra uma coroa de brilhantes para que eu possa coroá-la rainha? Caso você não queira alugar, sempre há possibilidade de retirar do armário alguma roupa da avó e desfilar na passarela com a essência de milenar naftalina. Ah, antes que eu esqueça, é muito importante que seu vestido seja largo o suficiente para correr. Este é sempre o grande e esperado momento. A corrida ao bifê. Quando um garçom depositar a baixela de prata com a cascata de camarões será dada a largada. Todos sairão correndo para encher pratos, bocas, bolsas e bolsos de camarões. Quem já tinha o bolso cheio de salgadinhos joga tudo no chão para substituir por camarão. Então, previna-se com uma saia folgada e uma bolsa espaçosa.
Os garçons, com imaculadas luvas brancas depositarão mais umas dezenas de travessas com os mais saborosos acepipes. Com a mesma velocidade eles desaparecerão nas bocas dos convidados que, com suas bocas cheias, gritarão aos garçons para trazerem mais taças de vinho.
Ah, minha querida Bela Adormecida, Cinderela ou Rapunzel, esqueça seus sapatinhos de cristal e sua carruagem de cavalos de longas crinas.
Numa reverência, respondo à segunda parte da sua pergunta, minha princesa, como deves ir? Deves ir comigo, para que eu, seu fiel escudeiro, a proteja da dura realidade.
Beijo,
Despertador

07 agosto 2007

Perdedor de Deus


Sou um predestinado! Quando nasci todos já sabiam que meu destino seria o sofrimento. No meu parto não havia nem estrela nem cometa a iluminar o caminho. Apenas um buraco negro. Há os eleitos, sou o perdedor.
Quis a sorte que eu freqüentasse a alta classe. Sempre rodeado de moças apetitosas e rapazes fortes num desfile constante de corpos e modas. Não faço feio, modéstia à parte, sou escultural.A educação espiritual me ensinou a ouvir problemas alheios. A vida é terrível. Competitividade, falsidade, egoísmo, dinheiro, vaidade, paixão. A sociedade está com problemas graves e, em vez do diálogo, pancadas. Não consultam, não expõem, não conversam, não se queixam, não se confessam, apenas batem. Esta é minha sina. Só querem saber de bater em mim. Reflito, oro, medito, mas jamais revido. Absorvo bem os golpes da vida. Acredito em reencarnação. Devo ter sido muito mau e agora cabe-me a purificação. Meu aprendizado é apanhar sem revidar, responder sempre com um sorriso. Meu crescimento interno permite que eu sonhe uma vida melhor depois desta, estou cansado de ser boneco de academia de musculação.

02 agosto 2007

Político na tevê




Barzinho lotado na final da copa do mundo.
Político passa na frente da tevê.
Neguinho grita que deputado não é transparente.

19 julho 2007

Ausência


Sou a secretária eletrônica do blog do Klotz.

Ele viajou e só retorna em agosto.

Por favor, deixe seu comentário, elogio ou esculhambação.






Cu acentuado


Sou orkutiano e naquelas bandas participo de uma comunidade Bar dos Escritores. Há vários participantes que realmente dominam o riscado. Entretanto há outros que escrevem uns testos ezquizitos. Vários escrevem palavrões e consideram questão de postura, de atitude. Ou contestação.

Cu deixou de ser obsceno há duas décadas ou mais. Só é obsceno quando é acentuado.
Depois de ler outra obscenidade escrevi este besteirol.

"Esta comunidade já teve homéricas discussões à respeito do cu acentuado.
Um amigo falou do cu rosado e do cu sujo. Se fosse acentuado seria cúpreo.
Só o mulo leva acento no cu. Isto, quando o cu vai na frente. É o cúmulo.
A alta casta da igreja também é a favor do cu acentuado. É a cúria.
Quem tem dado sabe que cu gosta de acento. É o cúbico.
Quem está de acordo em levar acento no cu é cúmplice.
Há pessoas que não concordam e acham que cu deve receber acento sim. E ficam decúbito.
Mesmo sem acento, pode-se, com o cu, tomar assento."

15 julho 2007

Mulher dura na queda

Dei flores perfumadas,
abri portas,
puxei cadeiras aveludadas.
Ofereci chocolate quente.
Preparei banquete.
Fiz poesia, declamei.
Negativou com a cabeça.
Deixou-me sem sentidos.
Apelei.
Cochichei que o deputado foi processado.
Que o governador foi obrigado a devolver o dinheiro.
Que o presidente demitiu seis ministros.
E renunciou.
Fui beijado, na boca.
Faz sentido.
※ ※ ※ ※ ※
Quadro “A diva no divã” de Rosiane

12 julho 2007

Manchete

Bandido estupra e mata anciã. Traficante vende, não entrega e esfaqueia. Parou no sinal e perdeu o carro. Pivete chapado mata por um relógio quebrado. Pedreiro faz sexo com nenê da vizinha. Mais uma rebelião no presídio. São manchetes diárias dos nossos jornais. Na verdade não são manchetes, são apenas chamativos das páginas internas do jornal. Às primeiras páginas cabem as verdadeiras notícias de destaque: política, economia e esporte. Os fatos corriqueiros de morte e violência, de tão comuns ficam com as páginas centrais. Os acontecimentos só recebem relevo quando o algoz ou a vítima são pessoas de notório destaque. Se o seqüestrado for apenas rico não receberá sequer uma linha dos jornais.
É a banalização da morte, a vulgarização do crime. É o cotidiano. Ninguém mais se importa.
Os presídios estão superlotados, os policiais não têm formação, os processos percorrem um lento e burocrático caminho, as leis estão obsoletas e se contradizem, sempre há mais uma instância a ser recorrida, a corrupção atinge até juízes. As estatísticas informam que menos de 20% dos criminosos acabam condenados e destes, menos de 15% cumprem toda a pena.
O bandido tem a certeza da impunidade. Ao cidadão cabe esperar apenas pela justiça divina. Ao perceber à sua volta um rastro de terrores ela passa a desejar a morte do malfeitor. A morte preferencialmente em julgamento sumário e execução em praça pública.
Se não houver uma reviravolta em todo sistema, breve tornaremos à Idade Média e teremos como manchete: Povo brasileiro exige pena de morte.

04 julho 2007

Girafa barulhenta


Caminhar sempre é bom. Acompanhado é melhor. E quando a companhia é agradável, é o máximo. Tenho uma vizinha que gosta de caminhar comigo.
Infelizmente a velocidade dela é devagarzinho. Bem devagarzinho, para poder
falar bastante. Ela é muito alegre, extrovertida e perguntadeira. Bem típico da idade. Eu que não tenho nenhum neto, a princípio fiquei incomodado com esse negócio de me chamar de Vô. Mas é uma menina muito fofinha. Demorei a me acostumar, agora até gosto de ser chamado vovô. Quando ganho beijo lambuzado nem reclamo.
Hoje ela me contou que já sabe o que o irmãozinho vai ganhar de aniversário, mas que não vai me contar porque a mãe disse que era segredo.
Depois ela cantou a musiquinha da escola.
Meu lanchinho, meu lanchinho
vou comer, vou comer
pra ficar fortinho, pra ficar fortinho
e crescer e crescer.
E aí, sem mais nem menos ela perguntou se era verdade que as girafas não faziam barulho.
Eu não sabia se aquilo era uma piada, pegadinha ou era uma demonstração de conhecimento.
– Quem te disse isso?
– A tia. Ela disse que os cachorros latem, que os gatos miam, que os passarinhos piam, mas que as girafas não falam. As coitadas não fazem nenhum barulho.
Percebi os olhos tristes da menina com pena da girafa.
– As girafas fazem barulho sim. Você precisa ouvir como é alto o pum da girafa.
A menina deu uma risada e eu continuei.
– Silenciosas são as borboletas. Ou você já ouviu as borboletas batendo papo e fazendo algazarra?
Antes que ela respondesse continuei:
– Fale para sua tia que o único bicho que não fala é o criado-mudo.
Ganhei um delicioso beijo e ela saiu correndo.

27 junho 2007

Minha tia era um general

O nome da minha tia é Waltraut. Parece um castigo. Aos alemães é um nome para ser ostentado com orgulho. O problema de Waltraut, em relação ao próprio nome, é ter nascido no Brasil e residir no Brasil. Nasceu nos anos 20, do século passado. Filha de alemães imigrantes. Foi para a escola alemã. Freqüentava o clube alemão. O vizinho da frente era alemão. O da esquerda, alemão. O da direita também era alemão. Na mercearia comprava Reis, Bohnen e Zucker. Tudo em alemão. E o Herr Schmidt anotava em alemão a despesa na caderneta para a cobrança mensal.
Antes de prosseguir vamos para uma aula de alemão. A pronúncia do nome da minha tia é Váutraut. Com o último tê mudo. Repita comigo: Váutraut. Nem é tão difícil. Mas a aula não terminou. Reis é pronunciado ráis e significa arroz, Bohnen é pronunciado bônen e significa feijões enquanto Zucker é pronunciado tsúquer e é açúcar. Todas são iniciadas por maiúsculas porque substantivos, em alemão, são iniciados por maiúsculas. Agora podemos voltar à nossa tia. Ou melhor, à minha tia Waltraut.
– Quase esqueço de apresentar o Herr Schmidt. Herr Schmidt, leitor. Leitor, Herr Schmidt. Herr quer dizer senhor e Schmidt é tão comum quanto Silva ou Souza. Pronuncia-se hérr Chmit. Com tê mudo. Voltemos à tia Waltraut.
Ela era bonita, tinha postura ereta e voz firme. Se por um lado era elegante e ingênua por outra era determinada e inflexível. Quase uma caricatura.
Lá nos anos 60 ela pegava no pé dos meus primos, filhos dela. Queria que eles falassem alemão. Era mais do que natural que eles falassem português, como todo mundo. Na escola, no clube. Como o vizinho da frente e o do lado esquerdo. E o da direita também. Todos falavam português. Mas a tia queria que eles falassem alemão entre si. Irmão com irmão. Irmão com irmã. O cinto estalava no ar se um deles respondesse em português uma pergunta alemã. Tem que falar alemão! Dóitch chprehen! A minha tia era um general. E, generais não podem ser contrariados.
– Deutsch sprechen! – Fale alemão! – Ela ordenava em tom ríspido.
A prima mais velha já namorava escondido e ainda ouvia constrangida o ameaçador: – Deutsch sprechen!

O meu primo mais novo que devia ter uns sete anos também ouvia o Deutsch sprechen vinte vezes ao dia. Aquilo era uma lavagem cerebral. Tanto era, que um dia o menino estava brincando e se divertindo com o irmão e, de forma ingênua, perguntou para a mãe:
– Tenho que rir em alemão também?
Foi a libertação. Nunca mais a tia Waltraut ordenou que falassem alemão.
Mas meus primos nunca se libertaram de terem de comer espinafre, berinjela e chuchu. Tudo em alemão. É lógico.

12 junho 2007

Acordei


Acordei pensando e ejaculando vontades.
Você virou-me as costas.
Era tudo o que eu queria.

07 junho 2007

Mesa na calçada

Domingo ensolarado. Hora do almoço. Restaurante cheio. Guarda-sóis protegendo narizes empinados.
Papai Ivo, mamãe Tereza, avó Lucrécia, Pedro com a cara cheia de espinhas e Juninho com a chupeta.
Sobre a toalha engordurada uma travessa com um pouco de batatas fritas. Uma travessa cheia de alface, tomates e palmito. Uma travessa com resto de cebolas com molho. Outra travessa com arroz. Uma lata de cerveja e várias de guaraná.
Uma menina e um cachorro se aproximam.
Vovó vê longos cabelos desgrenhados, unhas sujas e pés descalços.
Pedro se delicia com olhos verdes e peitinhos desabrochando.
Mami se retrai com os vira-latas piolhentos.
Ivo vira a cara.
Juninho estende a sobra de bife mastigado.
A menina rasga a carne ao meio e oferta metade ao fiel amigo.
Juninho quer saber o nome da menina e seu cão.
Papi, Mami e Vó respondem juntos:– Bárbaros não têm nome!

28 maio 2007

Fora de medida

Chego em casa depois de mais um estafante dia de trabalho e a confusão está instalada: madame chorando na frente do fogão.
Sempre a tratei muito bem. Quase não lhe falta nada. Como sempre, acordei-a com um delicado beijo na testa, preparei o café e ainda coloquei colherinha e meia de açúcar. Beijei-a na saída. Melhor dizendo, beijei-a na boca, ao sair. Senti saudades e retornei direto para casa ao fim do dia.
Vejo que há uma série de xícaras diferentes espalhadas pela mesa da cozinha, um pacote de massa para bolo, um termômetro, a calculadora, alguns ovos de codorna, várias colheres de tamanhos diferentes, a jarra de leite, o pote de margarina derretida e o velho despertador barulhento.
Tomo-a em meus braços e pergunto o que foi que aconteceu.
Soluçando, responde que desejava preparar uma festinha só para nós dois, mas a receita do pacote estava por demais complicada:

BOLO DE CHOCOLATE
Ingredientes:
1 pacote de massa de bolo de chocolate
¾ de xícara de leite
3 ovos
2 colheres de margarina à temperatura ambiente

Misture tudo até formar massa homogênea; Unte e enfarinhe uma forma redonda com furo no meio; preaqueça o forno em temperatura média por quinze minutos; Não abra o forno antes de 30 minutos; após esfriar por 15 minutos, desenforme e sirva.
– Veja só quantas xícaras diferentes nós temos aqui: a do seu café, aquela outra de plástico, a do jogo de porcelana que ganhamos no nosso casamento... e todas têm tamanhos diferentes, – Ovos podem ser de codorna, de pata, de galinha, caipira, brancos, médios e... Enxugando as lágrimas. Qual dessas colheres? Uso a do diário ou devo usar a do faqueiro de prata?
Segurei-a pela mão, arrastando-a até a sala. Acomodei-a no sofá. E fui buscar dois cálices. Enquanto servia um porto, protestei:
– A culpa é da impunidade! Neste país as pessoas fazem o que querem e ninguém é responsabilizado por nada. Passam nos sinais vermelhos, assaltam, não fecham as pastas de dentes... Todos esses calhordas deveriam ser exemplarmente punidos! Para que serve o Instituto Nacional de Pesos e Medidas? Vou entrar com medida cautelar, seja lá o que isso queira dizer!
Irado, continuo meu protesto:
– Cientistas do mundo inteiro se reúnem, estudam e definem que quilograma é a massa do protótipo internacional constituído por um cilindro de platina e 10% de irídio depositado no Bureau Internacional de Pesos e Medidas, e ainda que o metro é igual ao comprimento do trajeto percorrido pela luz no vácuo durante um intervalo de tempo de 1/299 792 458 de segundo e... que diabos!
Virei o cálice de vinho para lubrificar a garganta e continuei:
– Estes fazedores de receitas culinárias estão nos cozinhando! Como vamos definir o que é uma pitada? Quantas gramas? Uma colher rasa de farinha? Então, além das colheres de chá, sopa e sobremesa, ainda podem ser cheias, bem cheias e rasas? Aí, ainda tem a história de meia xícara, três quartos de xícara ao invés de dizerem que se trata de tantos mililitros. Tenham a santa paciência! Forno à temperatura média. Vai te danar!
Sirvo-me de outro cálice de porto, viro o cálice de um só gole e continuo no meu discurso:
– A falta de uniformização das medidas é um retrocesso para a nossa nação. Sucrilhos, macarrão instantâneo, molho de tomate, geléia, coco ralado, sapatos... Nada está padronizado. Estamos a léguas de distância dos povos desenvolvidos!
Resolvi respirar e dar um dedo de prosa:
– Querida, você sempre soube preparar comidas maravilhosas. O que foi que houve? De verdade?
– Bom, eu só tinha ovos de codorna. Então quis saber quantos ovos de codorna seriam equivalentes a um de galinha. E principalmente queria saber onde você havia escondido a garrafa de vinho do porto.

※ ※ ※ ※ ※
Este texto foi extraído de “von Silva” – livro que aguarda publicação

22 maio 2007

Panapaná

Curioso? Também fiquei. Eu tinha um dicionário à mão. Talvez você não tenha. Se tiver, não precisa buscar, até o final do texto desvendaremos esta charada.
Panapaná não tem prefixo nem sufixo. E nem crucifixo para quem não souber o significado.
Existe um jogo com centenas de palavras, cada uma associada a cinco possibilidades, apenas uma verdadeira. Os jogadores devem tentar descobrir o significado se não souberem a resposta certa. Este não é um jogo, apenas um breve exercício mental.
Panapaná não tem origem grega nem latina. Não provém do francês, nem do inglês. É produto nacional, do bom. Ascendência tupi. Desta língua aprendemos e guardamos pouco. Ita é pedra. Pira é peixe. Boi é cobra e açu é grande. Só conhece quem se aventura por palavras cruzadas.
Com estas dicas já podemos deduzir que panapaná não é nome de palavra para invento do homem nem de coisa relacionada a modernidades. É coisa da natureza ou de sentimento.
Panapaná apesar de coletivo não se encontra nas cidades. Não é coletivo de transportar pessoas, é coletivo de transportar sonhos.
Panapaná não é uma borboleta, é um conjunto delas refletindo a alegria do sol em devaneios coloridos.

15 maio 2007

Dona Clotilde na farmácia


Canapé, garabulha, janota e trabuzana.
A mim, pareciam palavrões dos mais ofensivos. Para Dona Clotilde significavam sofá, confusão, mauricinho e tempestade.
Disseram-me que era professora do gymnásio. Maquiadíssima, ela usava um vestido preto com broche na lapela, um coque no cabelo roxo e sapatos com um salto de tacão. O conjunto devia ter uns 150 anos de idade. Ou mais.
Tratava-se de uma vetusta senhora. Velha era pouco. Dona Clotilde era muito velha.
Eu vi quando aquela ortodoxa figura entrou na farmácia. Reparei que escolheu escova de dentes e um creme que devia ser hidratante. Foi ao fundo da loja e retornou. Pegou um sabonete e tornou a ir ao fundo da farmácia onde separou um vidro de sei lá o quê.
Percebendo que a senhora estava desconfortável o atendente perguntou se poderia ajudá-la.
Eu estava muito longe e não ouvi o pedido. Apenas ouvi o balconista perguntar se ela estava rouca.
Vi a senhora matusalém contestar e mexer os lábios novamente.
O rapazola franziu a testa como quem não entendeu.
– A senhora está com dores nas costas?
A miúda anciã negou com a cabeça de coque roxo e discretamente resmungou alguma coisa.
– A senhora está com furúnculo?
A idosa mulher, quase se escondendo, fez que não. Chamou o farmacêutico mais para perto e cochichou alguma coisa.
Julgando a professora com problemas de audição, o moço com o jaleco branco perguntou:
– A senhora não consegue se sentar?
A antiqüíssima e frágil mulher se encolheu toda, fez que sim com os olhos. E, com o indicador em cruz sobre os lábios pediu discrição ao atendente e disse mais alguma coisa.
Vi quando o vendedor respondeu alguma coisa e a senhora consentiu com um discretíssimo sorriso.
Antes da série de bengaladas eu vi quando o balconista gritou para o colega:
– João, pega aí uma caixa de supositório para hemorróidas.

10 maio 2007

Narciso

Narciso era auto apaixonado. Seus pais eram o deus-rio Cefiso e a ninfa Liríope. E,por ser filho de deus se achava lindo, divino e maravilhoso. Passava o dia admirando-se no reflexo das águas da lagoa Eco. O problema era ficar de quatro, alguém poderia querer amá-lo também.
Por ordem de Narciso, o melhor artífice do reino criou o espelho: recortou um pedaço da lagoa e colocou-o numa moldura de brancas nuvens.
Narciso ao contemplar-se pela primeira vez ouviu o espelho repetindo: – Eco, eco, eco. Curioso e intrigado, aproximou-se bem do pedaço da lagoa e perguntou:
– Você só sabe dizer eco? O que dizes de mim?
– Você tem mau hálito.

※ ※ ※ ※ ※
Imagem de Narciso por Caravaggio

25 abril 2007

Opostos

Um casal de amigos, Paulo e Fernanda, são opostos em tudo. A começar, naturalmente pelo sexo. Ele é alto, ela é baixa. Ele magro, ela gorda. Ele sovina, ela shopping center. Ele moreno, ela loira. Inteligência não é medida pela cor do cabelo, isto é puro preconceito. Ele é preocupado, ela é desligada. Ele pontual, ela, ih, esqueci. Ele toma rápido banho frio, ela demorado banho quente. Cá entre nós e a torcida do Flamengo, quem é que agüenta demorado banho frio? Ele enrola a pasta de dente, ela nem põe a tampa. Ele diz que tudo tem seu lugar, ela procura a lixa de unha na cozinha encontra a pulseira dourada. Ele sapato, flauta e violoncelo, ela apito, pandeiro e chinelo.
Ele jamais larga o sapato na frente da tevê. Ele só tira o sapato após desfazer o lacinho, para em seguida guardá-lo no armário. Ao lado do outro sapato da mesma cor, logo abaixo da etiqueta: sapato social. Todos os cedês têm lugar certo. Dentro de cada caixinha está o cedê anunciado na frente. A não ser que ela tenha escutado música na última hora.
E daí?
Daí, que quase todos os casais lembram Paulo e Fernanda. Alguns Fernando e Paula.
Esta descrição está parecendo clichê. Então, a melhor forma é parar com a descrição e contar dois fatos recentes ocorridos com o casal.

– Fernanda onde está agenda de telefones?
– Está no banheiro.
– Isso é lugar? O lugar da agenda é do lado do telefone.
– Justamente. O telefone está lá no banheiro.
Paulo resmungando vai até o banheiro, pega o telefone e agenda e retorna para frente da tevê. Começa a folhear à procura de um número.
– Para que horas devo chamar o Humberto e a Fátima?
– Na hora que chegarem. Chegaram.
– Isto significa antes ou depois das nove?
– Então marca aí a hora que você quiser.
– Então vou chamar para as nove.
Paulo continua a folhear a agenda. E pergunta:
– Você vai colocar que roupa?
– Depois eu vejo. Alguma que estiver passada.
– Onde está o número do Humberto? Procurei em erre de Rodrigues e não achei.Também não está no agá nem no efe.
– Procure em eme. É Maria de Fátima!
– Já olhei! Só falta no u de Humberto.
Paulo resolve procurar página por página. Ele há de encontrar o telefone.
– Mas que diabos, Fernanda! O número está no cê.
– Lógico. Carteado. Turma do carteado.
Os nomes são fictícios. Qualquer semelhança é mera coincidência. Ou você acha que eu iria colocar os verdadeiros nomes? E, por serem fictícios conto o outro fato:
O quê você pensaria se visse a toalha molhada do Paulo sobre a cama?
a) Que o Paulo acabou de tomar banho, está se vestindo, e que já já, vai pendurar a toalha;
b) Que o Paulo, afinal, não é tão inflexível e chato;
c) Que o Paulo não costuma deixar a toalha jogada em cima da cama. Larga no chão.
d) A Fernanda tomou banho e usou a toalha do Paulo. A dela está em cima da cadeira desde ontem. E, que o Paulo vai ficar furioso quando descobrir sua toalha molhada e em cima da cama. Do lado em que dorme.
Ontem liguei para a Fernanda e ela disse que a resposta certa seria outra:
e) Nenhuma das anteriores. A Fernanda tomou banho. A toalha dela está no chão do banheiro para enxugar os pés. Usou a do Paulo para se enxugar. Jogou-a em cima da cama para provocar. Enquanto passa um creme nas pernas pede que Paulo traga a camisola branca. Paulo vai se enfurecer pela enésima vez ao ver a toalha, porém ao entregar a camisola Fernanda muda o tom e a começa a massageá-la, antes de agarrá-la entusiasticamente.
Os opostos se atraem.

04 abril 2007

O primeiro pentelho branco a gente nunca esquece!

Este foi o tema que encontrei no blog da Moniquinha há muuuuuito tempo. http://monicaneves.multiply.com/
E, o início do texto, pertence a ela. Um super beijo, garota.

Ingredients: Uma pessoa conhecida veio falar da sua crise quando surgiu o seu primeiro pentelho branco. Me pediu conselho. Eu dei né! Segue abaixo.Directions:Minha sugestão:Assim que aparecer o primeiro pentelho branco tenha uma crise daquelas, memorável. Puxe os cabelos (não os pentelhos), grite, berre, diga o quanto a vida é injusta e que Deus é homem e nunca deve ter tido um pentelho branco. Pegue uma tesourinha e delete o pobre coitado. Enquanto for um pentelho só, a crise estará liberada. Quando forem muitos, minha querida, ou você assume a perereca branquinha ou trate de pintar a pobre coitada (fico com a primeira opção). Você também pode adotar o modelito máquina zero. Super moderno. E não esqueça: bom humor sempre! Envelhecendo, porém com charme!

Meu amigo Roberto Klotz, grande cronista, leu meu post sobre os pentelhos brancos. Não pode responder pq ainda não quer se cadastrar no multiply. Me mandou a resposta via e-mail, hilária.

Transcrevo na íntegra: Este é um tema cercado de muito tabu. A sociedade tem vergonha de discutir tão importante tema. Discutiram séculos sobre o divórcio, o aborto e a eutanásia. A questão dos pelos pubianos sequer entrou em pauta para discussão. Quando, e se, a discussão dos pelos pubianos ganhar foro pode ser que abram espaço para discussão da cor dos ditos cujos. Acredito sinceramente que a questão do enbranquecimento da cabeleira púbia é assunto apenas daqueles que já amadureceram na vida. As crianças não têm nenhuma preocupação quanto à cor nem credo dos pentelhos, apenas desejam ardentemente que a região pélvica seja preenchida rapidamente com pentelhos. Os adolescentes e maduros têm apenas a preocupação na reposição dos pelos devido ao desgaste natural nas relações interpubianas. O pentelho sofre muita discriminação. Muitas mulheres simplesmente podam os pentelhos, como podam seus maridos nas conversas, outras mulheres reduzem drasticamente a área cultivada deixando apenas a mata ciliar. O pentelho também é execrado e ofendido quando das relações orais. Normalmente cospem e ofendem o infeliz que se intromete na boca. A própria palavra pentelho era considerada de baixo calão até que nos últimos 20 anos um apresentador de televisão começou a fazer uso da palavra à exaustão. Pode-se até dizer que o tal apresentador é um chato, assunto próprio para pentelhos. Não querendo fugir à questão proposta, surgimento do pentelho branco, defendo intransigentemente os pentelhos brancos. Acho um absurdo a discriminação contra os pentelhos brancos. Neste mundo povoado por negros pentelhos, penso que devam ser abertos espaços para os pentelhos brancos. Deve ser instituída cota para pentelhos brancos, da mesma forma que existem cotas para os vestibulandos negros, devem existir cotas para os pentelhos brancos.

26 março 2007

Retrato em branco e preto

A definição de raça agora é sacramentada por um tribunal de pureza racial que fotografa os candidatos a vestibular na UnB – Universidade de Brasília, e define os que podem ou não ser enquadrados nas cotas dos negros. Na escola aprendi que raça era uma coisa e cor era outra.
O que me interessa é que devem ser criadas cotas também para os portadores de letra K no nome. Desde a alfabetização sofri descriminação. Tudo por causa da reforma ortográfica de 1943 que eliminou o K do nosso alfabeto. Os portadores de letra W ou Y que juntem sua turma para formalizar seu pleito. Vou cuidar apenas daquilo que me diz respeito.
Somos poucos, pleiteamos uma cota de apenas 0,5%. Negros e mulatos ficam com 40%; deficientes físicos 20%; egressos de escolas públicas: 35:%; pobres: 20%; indígenas: 15%; asiáticos: 4,5%; judeus: 3%; desafinados: 5%; macrobióticos 2%; órfãos: 1%; analfabetos 18,37%.
O nosso caso não necessitará de nenhuma comissão especial para confirmação. Dispensaremos atestado de pobreza e exame de DNA. A identidade será suficiente para provar nosso enquadramento na cota. Particularmente tenho K por parte de pai e de mãe.
Feliz mesmo vai ser um amigo meu Zibgniev Chlowinsky, é pobre, estudou em escola pública do nordeste, não aprendeu a escrever, é preto de pai e indígena de vizinho, sem amídalas, careca, míope e na casa dele não tem televisão colorida. Com certeza vai entrar na faculdade, pois somando todas as cotas estará com 127,38%. O problema é que irá direto para o laboratório de antropologia.

17 março 2007

O grito do Ipiranga

Pedro apesar da fama de absolutista e mandão era uma pessoa dócil e bem mandada. Sempre atendia quando chamado. Miguel, Paula, ou Joaquim. Pedro atendia da forma que o chamassem. Também pudera, batizaram-no de Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon.
Apesar de todas aquelas opções preferíamos chamá-lo príncipe. Era uma coisa respeitosa. Apesar de que, entre nós, às vezes a gente falava do príííncipe puchando bem o iii e colocando o queixo no ombro e piscando rapidamente os olhos. Tínhamos que ser respeitosos, afinal sempre era bom viver às custas de Sua Riqueza.
Pedro tinha mania de se vestir de príncipe. Usava calças brancas tão apertadas que permitiam saber se a moeda do bolso estava cara ou coroa. Usava também umas jaquetas com ombreiras altas e enfeitada de medalhinhas douradas. Pedro era muito avançado para a época., este figurino só virou sucesso nos bailes gays do Rio de Janeiro 250 anos depois.
Pedro era casado com Leopoldina que era tão feia que era conhecida por trem. Por isso mesmo Pedro vivia viajando fugindo de casa. Ele sempre ia a Santos para surfar. Lá as ondas são pequenas de forma que ele dificilmente caia da prancha. Sob um guarda-sol ele foi apresentado a Maria Domitília, uma paulistana que todos diziam ser de Santos. Domitília, como Pedro, era muito avançada em termos de vestimentas. Ia para praia com uma touca minúscula. Ambos tinham 23 anos e se entendiam maravilhosamente sobre os lençóis de cetim. Pedro e Domitília tinham taras sexuais incríveis: se chamavam príncipe e marquesa respectivamente.
No início de setembro, depois de dois meses de praia, Pedro já estava muito bronzeado e deveria retornar a São Paulo e cuidar dos detalhes para a sua festa de aniversário. Pedro faria 24 anos dentro de dois meses e a expectativa era muito grande para o grande baile anual de aniversário. Tudo era motivo para baile.
O mordomo, José Bonifácio, juntou todo o pessoal, mandou selar os cavalos e preparou uma charrete acolchoada para Pedro. Retornamos lentamente subindo a Serra do Mar e atravessando a Mata Atlântica. No quinto dia de viagem, em pleno feriado, chegamos ao topo da serra com esplêndida vista da baixada santista. Montamos acampamento e preparamos uma peixada real.
Os peixes já não tinham sangue azul. Estavam verdes após calorosa viagem numa época em que não havia frizer nem geladeira.
Almoçamos e seguimos viagem. José Bonifácio queria chegar em São Paulo a tempo de ver o desfille no noticiário da tevê.
O peixe verde começou a saltar dentro da barriga de Pedro. Não tardou a achar a saída. Pedro borrou-se todo. Borrou também a bela carruagem aveludada. O cheiro da condução de Pedro ficou insuportável de modo que ele teve de montar um cavalo. Foi necessário limpar-se num riacho próximo. Na falta de papel higiênico utilizou-se da Gazeta do Rio de Janeiro onde leu que foi rebaixado de regente para delegado. Neste exato momento o outro peixe verde saltou de dentro da barriga da Sua Riqueza provocando enorme dor. Pedro urrou.
– Meeeeeerda!
O peixe buscou a independência e este episódio foi retratado anos depois por Pedro Américo e batizado como “O Grito do Ipiranga”.

08 março 2007

Apaguei ontem após longa, extenuante e celestial seção de amor e sexo sob as luzes do eclipse lunar. Acordei com passarinhos alvorando na minha janela.
Antes mesmo de saber a cor do céu liguei a música do computador e o aleatório escolheu “Arpan” de George Harrison na sua fase Hare Krishna. Fechei os olhos e a minha imaginação sentou-me de cueca branca no frio piso da varanda, cruzou-me as pernas e, ioguísticamente, juntou-me o polegar e o indicador de cada mão. Posição ereta olhos fechadas num looooogo e sonoro OOOOMMMM. O sol bateu-me à testa. Reabri os olhos. É impressionante como existem dias em que nossas antenas captam melhor a energia presente na luz solar. Amén!
Li o jornal enquanto alimentava o corpo com laranja doce. Corrupção, bandalheira, desvio de dinheiros públicos, nepotismo, suborno, impunidade. Nem nos fins de semana os políticos dão folga! Vade retro!
Apliquei um filtro solar na pele e saí pelo eixão domingueiro.
Manhã maravilhosa. A cabeça a mil por hora pensando projetos. Olhos como sempre, à procura de curvas femininas. Braços se exercitando em dessintonia com o caminhar das pernas. Os órgãos do corpo não estavam em harmonia, cada um defendendo seus interesses. Caminhei roboticamente. Até que... sempre há um: até que... Até que, lá de longe, ouvi um barulho grave de tambores. Ritmo espaçado. Cadência forte e marcada. Parei e virei a cabeça para o oeste na direção da praça da Harmonia Universal. Um gramado enorme entre duas superquadras da Asa Norte. Vi um amontoado de pessoas sob um espaçoso toldo multicolorido. Um cartaz anunciava o novo ano chinês. Independentemente de qualquer comando, as pernas começaram a se movimentar naquela direção que os ouvidos perscrutaram e os olhos indicaram. As pernas correram. Pulmões foram oxigenados na corrida. O meu todo queria chegar antes daquela apresentação terminar.
Quarenta jovens, quase todos orientais, numa ginástica marcial batiam tambores e pandeiros em ritmo compassado. Movimentos amplos. Baquetas verdes, coletes vermelhos cardinais e longas meias brancas brilhantes. Tudo protegido por seis guardiões ostentando enormes bandeiras amarelas que balançavam ao vento.
Muitos aplausos e assobios. Gente de toda idade, cor e credo.
Todas as manhãs às seis ou sete e meia, há trinta anos, o mestre Moo Shong Woo promove seções de tai chi chuan. Sob as nuvens, a comunidade chinesa promove gratuitamente a ginástica e prega a paz e a harmonia. Já estiquei meus músculos e alonguei minha coluna algumas vezes em conjunto com eles. Admiro profundamente o trabalho do quase octogenário mestre Woo. Pena que os horários e a distância não sejam muito favoráveis. Gostaria que a montanha fosse a Maomé.
Agora, sob o enorme toldo colorido um grupo de vinte e cinco pessoas uniformizadas formou um retângulo e graciosamente iniciou movimentos de tai chi. A música de Enya bateu fundo. No Natal, Jorge, meu sobrinho, presenteou-me com cedê com trocentas músicas deliciosas. Entre as quais esta, de Enya, e aquela do guru Harrison bebendo das fontes indianas. Eu poderia fazer parte daquele grupo, ao menos a idade era compatível.
Muitas pessoas sob e ao redor do toldo. Um grupo de camisas douradas ensaiando coreografia com espadas. Um senhor com roupa negra de samurai. Outro senhor de vastos bigodes trajando cetim azul celeste. Uma menininha se lambuzando de sorvete de chocolate. Dezenas de fotógrafos amadores. Alguns profissionais. Um sujeito com microfone buscando entrevistas. Um político abraçando quem lhe passasse à frente. Uma grisalha oriental de mãos dadas com o netinho na bicicleta. Os alto falantes anunciando nova apresentação e pedindo que todos jogassem seu lixo nos lugares certos para devolver a praça tão limpa quanto encontrada antes do evento. Todos os tipos de gentes: crianças, gordos, pretos, maiorias e minorias.
Antes de ir embora fui olhar os quiosques. Sabonetes cheirosos. Toalhas pintadas à mão. Sushis de legumes. Budas de cerâmica e dragões de resina. Nossas Senhoras de Aparecidas. Pães de queijo e vatapás. Maravilhas de quiosques ecumênicos.
Levantei os olhos e a cinco metros, bem à minha frente estava um senhor em roupa de cetim creme, calvo, ereto, sessenta anos aparentes, sorridente, olhos puxados. Juntei minhas mãos no peito, fechei os olhos e lentamente abaixei a cabeça em reverência carinhosa. Quando abri meus olhos recebi um acolhedor aperto de mão do mestre Wu.
Já tive a oportunidade de trocar algumas palavras com ele anteriormente. Olá, bom-dia, obrigado, para o senhor também. Desta vez foi diferente. Não falei nem ouvi. Foi apenas um aperto de mão. Não qualquer aperto de mão. Fiquei mais leve. Recebi uma energia indescritível. Meus olhos marejaram. Não sei o que aconteceu. Sei apenas que o corpo estremeceu e rumou para casa.
Jamais segui qualquer tipo de religião. Mesmo respeitosamente, critico sempre o fanatismo cego e a religiosidade interesseira.
Estive na Esplanada dos Ministérios na vinda do papa João Paulo II. Milhões de pessoas reverenciando o carisma de Sua Santidade. O momento foi inesquecível. Mas não captei a mesma energia.
Só captei a mesma energia no começo dos anos oitenta quando estava nos corredores de um órgão público e pouco a minha frente caminhava um senhor de cabelos loiros encimados por solidéu. Eu arrisquei chamar: – Rabino Sobel?
O rabino virou-se, caminhou em minha direção me abraçou forte disse uma palavra carinhosa no meu ouvido e retornou ao seu grupo. Meus joelhos quase dobraram com a energia que recebi daquele homem.
E agora de novo: o mesmo magnetismo.
São dez e quinze. Eu já estou pronto. O mundo já pode acabar.

※ ※ ※ ※ ※
Desenho de Eduardo Bonfim do HQ Os Barbudão

05 março 2007

Estréia



Chegou o dia 5.
É minha vez. O dia cinco de março é dia da minha estréia no Bar do Escritor.
Três dias antes disseram que eu ficaria nervoso.
Eu me lembro de ter dito que eu tiraria de letra. O alfabeto inteiro. Estava tranqüilo. Tranqüilíssimo.
Isso foi três dias antes. Era começo de noite do dia dois.
Passei a noite em claro. Contei carneirinhos. Pensei no meu texto. Contei mais carneirinhos. Tomei água com açúcar. Contei carneirinhos. Bobagem, água com açúcar. Aguinha com açúcar e carneirinhos. Daqui a pouco aparece o lobo mau e bota um fim essa história infantil. Pensei num texto e virei um vidro de maracujina. Apaguei rapidinho.
Texto que é bom, nada.
Graças à maracujina, meu dia 3 começou lá pela uma da tarde. Aí tive que recuperar o tempo perdido fazer aquilo que deixei de fazer pela manhã.
Por que diabos fui escolher o dia cinco? O mês tem trinta dias e fui escolher logo um dia lá do comecinho. O calendário estava todo aberto e escolhi aquele número. Sou burro mesmo. Poderia, por exemplo, ter escolhido uma das dezenas do burro: nove a doze. Teria ganho uma semana.
Rogaram praga.
Já chegou outra noite, não preparei meu escrito e os lençóis já começaram a pesar. Apesar de você, amanhã há de ser outro dia... A cabeça gira, gira e gira e gira e nada de fixar um conto ou uma crônica. Levanto da cama, pego um copo com água e digo com voz firme e alta:
– Não vou fazer a besteira de tomar outro vidro de maracujina. Eu sou um escritor responsável. Olhei para o copo de novo e de acordo com minha palavra, rapidamente engoli uma bolinha vermelha de Lexotan.
O dia 4 começou sonolento às três da tarde.
Meu tempo está acabando. Tenho de ter a idéia, escrever, revisar e postar. A contagem regressiva está próxima do dois , um fogo!
Ai! Deu dor de barriga.
Por que as estréias são assim?
Eu poderia ter ganho dois dias e escolhido o dia sete. Sete são as notas musicais. Sete são as cores do arco-íris. Sete são os motivos pelos quais não consigo escrever.
Meu tempo está se esgotando rapidamente e ainda tenho que organizar tudo para uma festa aqui em casa amanhã.
Tudo o que eu sempre quis na vida era escrever e ser lido. Minha grande oportunidade chegou. Dia cinco, por quê?
No fundo eu sei. Dia cinco de março completo 55 anos. É meu aniversário.
Este é meu melhor presente para quem escreve: escrever e ter alguém que leia até aqui.
Obrigado.


Enzine Bar do Escritor http://www.bardoescritor.blogspot.com/

27 fevereiro 2007

Getúlio e Virgínia Lane

Segundo o Tutty Vasques, a história da ex-vedete Virgínia Lane mudou o tiro mais famoso do país: o que matou Getúlio Vargas.
Virgínia Lane concedeu a Roberto Canázio, da Rádio Globo, no último dia de Carnaval uma entrevista onde falaram sobre marchinhas de época e da atração que as pernas da ex-vedete ainda exerce sobre o público.Em um dado momento, a conhecida relação amorosa que ela manteve com o presidente Getúlio Vargas enveredou pelo delírio absoluto. Miss Lane resolveu falar e vejam no que deu:
- Eu tive paixão por esse cara (o Getúlio);
- E você freqüentava mesmo o Palácio do Catete?
- Você quer saber de uma coisa que vou dizer pela primeira vez. É meio perigoso... Eu estava na cama com ele quando entraram e o mataram. Ele foi assassinado, meu filho! Quando ouviu o barulho de gente entrando no quarto ele ainda chamou o Gregório Fortunato e mandou que ele me jogasse pela janela.
- Você viu o assassino?
- Eram quatro homens de máscaras que atiraram nele. Dois deles ainda correram para o Jardim, tiraram minha roupa, me deixaram nua em pêlo e disseram “vai, vagabunda, vai arrumar outro presidente. Vou contar toda essa história no livro que estou escrevendo, “Sua Excelência, a vedete que viu”. Sou uma testemunha viva da morte de um homem com quem não tive um casinho, não. Passei quinze anos dormindo e acordando com ele.
Eu escutei a entrevista e fiquei pensando: será que ela esclerosou ou a história é outra?

Logo após ler a coluna de Tutty Vasques em O Globo enviei e-mail com meu depoimento:

Pois eu, Roberto Klotz, afirmo: a história de Virgínia Lane é verdadeira.

Era quinta-feira. Passamos 24 horas fechados dentro de um armário escuro no hall de distribuição dos quartos do Palácio do Catete. Trezoito, era o líder, só poderíamos sair do armário após a ordem dele. Anos mais tarde soube que ele nos contratou a pedidos de Carlos Lacerda. Cicatriz estava ansioso, queria terminar o trabalho logo. Mão Negra não dizia palavra. Nós só poderíamos entrar no quarto após o grito do presidente. O presidente mantinha uma rotina impressionante, todos os dias, às vezes mais de uma vez, urrava igual ao Tarzan, seu ídolo, ao terminar sua relação fantasiosa com Jane. O nosso problema é que o presidente estava sempre disposto, não tinha hora certa. Virgínia tinha quatro roupas selvagens para agradar ao presidente. Não tínhamos certeza da hora, sabíamos apenas que iria acontecer e que sua excelência era dinâmico e rápido.
Deviam ser umas cinco e meia daquela fria madrugada quando Virgínia abriu o armário e escolheu a roupa de oncinha que estava num cabide logo à minha esquerda. Foi um momento inesquecível. Pude sentir o perfume de Miss Lane. Não era o perfume de uma vedete vulgar, era o cheiro de uma dama. Ela fechou a porta do armário e eu fechei meus olhos deixando fluir o aroma do perfume até chegar aos neurônios que instantaneamente acionaram a vitrola cantando sassaricando na voz maviosa e provocante de Virgína Lane. Aquela era a minha sensação predileta: medo e tesão. Meu desejo era entrar logo naquele quarto onde estava presidente. Por uma questão de ordem, eu aguardaria minha vez.
Cicatriz me cutucou:
– Será que Gegê ainda vai demorar muito?
Fiquei furioso. Odeio que interrompam minhas fantasias.
Neste exato segundo, o presidente imitou o Rei das Selvas e bateu com os punhos fechados no próprio peito.
Trezoito, Cicatriz e eu saímos do armário em direção ao quarto. Mão Negra, que também estava estimulado, ficou para trás porque estava com as com as calças arriadas.
Abri a porta, Cicatriz afastou a gostosa da Virgínia, Trezoito atirou. Mão Negra abriu a janela para Virgínia correr. O Tarzan, digo, o presidente ainda chamou por Fortunato antes de bater com as dez. Trezoito pegou a arma e colocou na mão de Getúlio. Corri atrás de Virgínia e tentei convencê-la que agora seria a minha vez e depois seria a vez de Mão Negra. Ela ficou brava, se esquivou e xingou com um sonoro palavrão. Mão, irritado ainda gritou:
– Vai, vagabunda, vai arrumar outro presidente.

Guardei este segredo desde aquele 24 de agosto de 1954 por amor, tesão e respeito a Virgínia. O crime já prescreveu e como ela abriu o bico, confirmo para quem quiser saber.

Minha única dúvida é quanto ao dia da semana, quinta-feira. O restante, é a mais absoluta verdade.

※ ※ ※ ※ ※
Hoje, dia 28 de fevereiro, em 1920, nasceu a cantora, vedete e compositora Virgínia Lane.

24 fevereiro 2007

Sombra da Figueira


Fim de tarde, sentei-me no banco da praça. Minhas companhias eram a sombra da figueira e um livro ilustrado. Acomodei-me, estiquei as pernas e abri o livro.
Uma carruagem parou na minha frente. Mexi interrogativamente a sobrancelha direita. O cocheiro, numa reverência com a cartola, fez um convite para um passeio. Depois de ser chamado Mi Lord, quem não iria?
Rapidamente chegamos a um enorme paredão de pedras cercado com água por todos os lados. Uma ponte de madeira era a única ligação para a ilha do castelo. Entramos. A parelha estancou bem à frente do arco principal. Desci. Antes mesmo do primeiro passo, ouvi o chicote estalar. A poeira se levantou e fiquei só. Pela amabilidade do cocheiro imaginei uma comissão de boas-vindas. Mas não. Nenhuma viva alma. Nem viva, nem morta. Observei toda a volta, o pátio estava deserto. Não vi ninguém nas duas torres. Não percebi nenhum movimento sobre os telhados. Na guarita não havia nenhum guarda. Ninguém.
Lentamente entrei. Pares de archotes sugeriam o caminho. A curiosidade levou-me ao átrio. Um grande espaço, o teto em abóbada, paredes de pedras retangulares e vários arcos, sugerindo vários caminhos. Lugar imponente embora mal iluminado. Posicionei-me exatamente no meio da grande sala. Entre o ponto mais alto do forro e a estrela negra marcada naquele chão de pedras regulares que formavam enormes círculos concêntricos. Nenhuma sombra denunciava presenças. Mantive-me em silêncio e girei meu corpo lentamente até completar a volta inteira. O único barulho era o da minha pulsação. Fechei os olhos e puxei o ar. Não me mexi. Percebi sutil odor de suor. Aspirei novamente. Abri os olhos, direcionei o nariz para minha axila. Maldita tensão! Em vez de sair, escolhi uma das aberturas curvas. Em frente, à esquerda. Não era a maior, era a mais iluminada. O corredor de pedras prosseguia largo e, da mesma forma que a entrada, guarnecido por pares de archotes produzindo luz amarela e trêmula. Andei uns cinqüenta passos e cheguei a uma escadaria. Para cima escura e para baixo mal iluminada. Optei descer.
Dei duas voltas antes de chegar ao piso inferior. Novo corredor largo. Neste ponto o olfato acusou cheiro de resinas de árvores, provavelmente alguma mistura para aquelas chamas acesas. A sensação era de umidade, desconforto e calor. Cheguei a uma sala com várias armaduras. Na parede, observei seis longas lanças metálicas terminadas em ponta ou em lâmina com se fossem machados. Estavam dispostas horizontalmente. Vi três bastões com correntes prendendo bolas cheias de pontas. Percebi nobreza nos vários escudos com brasões coloridos. Estavam dispostas, ainda, algumas armas que pareciam enormes foices, além de outros objetos estranhos. Nenhuma armadura tinha elmo. Não encontrei elmos nem nada que lembrasse capacetes. A outra parede ostentava espadas grossas e finas. E várias facas. Escolhi uma com bainha de couro desenhada e que poderia ser presa à cintura. Imaginei guerreiros guilhotinados. Resolvi sair daquele depósito de armas.
Mais alguns passos e cheguei à ampla adega. Estanquei na entrada. Sempre foi meu desejo servir-me de uma taça de vinho diretamente de um barril de carvalho. O coração começou a bater forte. Olhei em volta detalhadamente. Uns trinta tonéis. Cada tonel devia ter uns mil litros de vinho. Nenhum movimento. Nenhum ruído. Entrei e fui direto para a estante e, na ausência de taças, escolhi um copo de estanho. Fui ao tonel mais próximo e no momento em que pus a mão na torneirinha, senti o cheiro. Aquilo não era vinho. Em vez da torneira iluminada, escolhi outra, mais adiante, na penumbra. Desta vez não aceitei a proposta do castelo. Limpei o copo com a barra da camisa e posicionei-me para receber o líqüido dourado. Eu estava certo, não eram tonéis de vinho, eram barris de uísque. Uísque especial. Aspirei profundamente o centeio fermentado até ouvir uma gaita-de-foles. Molhei os lábios, estalei a língua e sentei-me à enorme mesa.
Jamais poderia ser vinho. Fui chamado Mi Lord. As armaduras sem elmos não eram resultado de francesas guilhotinas. Certamente estaria na Escócia, e em toda Grã-Bretanha usam a forca. Imaginei a corda no meu pescoço. Senti um arrepio na espinha. E senti também uma mão no meu ombro. Tomei um enorme susto.
– Vô, não quer dormir em casa?
Rapidamente me recompus, ajeitei a faca na cintura, peguei o livro sobre transportes antigos e caminhei abraçado com meu netinho até em casa, deixando para trás a sombra da figueira.


※ ※ ※ ※ ※
Primeiro lugar no concurso de contos da comunidade ††† Vale das Sombras††† no Orkut

23 fevereiro 2007

Meu amor voltou

Passei uma semana muito triste. Fui abandonado por um longo amor. Os meus dias ficaram mais longos e vazios.
No fim de semana, não suportei e saí em busca de companhia. Tive duas relações pagas, uma no sábado e outra no domingo. Não é o mesmo prazer. Nessas coisas sou muito conservador. Acho que para algumas coisas existe hora certa. Gosto logo cedo pela manhã. Estou disposto e receptivo. E no fim-de-semana tive que sair e buscar meu prazer.
Ontem eu quase telefonei implorando a volta. Mas resisti bravamente no meu orgulho.
Hoje cedo, abri a porta e fiquei excitado, estava lá, aos meus pés, o meu jornal voltou.
Tive mais uma relação. Amo jornal logo cedo.
 
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